"Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve." – Mateus 11:29-30
Anelise
Retiro meus dedos um tanto calejados das cordas do violino. Uma pressão a qual já me acostumei – quando afasto o instrumento de mim é como se eu estivesse colocando uma parte do meu corpo no canto do quarto.
Encaro meu reflexo no espelho e tento me acostumar com a ideia de sair dessa cidade sem olhar para trás uma vez sequer. Não consigo.
Numa realidade alternativa talvez sim. E espero que a Anelise de lá use a coragem que eu não tenho para coisas boas e frutíferas, apenas.
Incrível. Eu só tenho uma chance e estou jogando ela para o acaso. Pior. Para uma outra eu que nem mesmo existe. Nem mesmo pensar que outras pessoas também já desejaram (ou desejam) ser outro alguém é reconfortante. Porque é que esse sentimento sequer existe? Porque precisamos ser a mesma pessoa até o fim? E ao mesmo tempo não ser...
A responsabilidade de se deixar ser mudada pesa no meu peito de uma forma que não deveria.
- Ana?
Meu tio me encara na entrada do quarto e percebo seu semblante levemente consternado.
- Porque parou?
- Desculpe. Acabei me distraindo.
Esse era o pior tipo de resposta que eu poderia dar. Ele suspira copiosamente.
- Bom, vamos continuar com Bach.
Onde ele próprio se encaixa em "vamos" neste exato momento fica suspenso no ar, uma vez que sou só eu estudando as partituras enquanto ele fica a postos para me impedir de parar, como agora.
Tão simples como apareceu, ele some mais uma vez. E eu me perco em meus devaneios, dessa vez integrando-os as linhas da partitura que meus olhos estudam.
**
Um mês se passou e agora a sensação é de sufoco. E todos os sinônimos disso que possam ser encontrados na história da língua portuguesa e das palavras.
Não posso mais continuar. Não. Mas tem Isaac e Pietro, todas as velas cítricas e livros que não cabem numa mala e o curso de música. Matteo e Sarah.
O gazebo, livros de colorir e a janela marrom-bordô.
Não posso mais viver as vontades deles.
Não faço ideia de como a outra Anelise está seguindo com sua vida no universo paralelo e muito provavelmente nunca vou saber. Mas acaba sendo muito fácil empacotar tudo que preciso em uma tarde e sair. Sem olhar pra trás.
- Uma flor para uma moça bonita. – Um senhor, enternecido com meu semblante perdido, me diz. Em seguida me entrega uma rosa vermelha do montante que está vendendo.
- Eu não tenho...- Suas mãos fazem um gesto dando a entender que não preciso pagar.
E essa é a forma que encontrei de dizer a mim mesma que está tudo bem assim que chego em Siena.
Percorro meus olhos pelo ambiente à minha volta. As folhas do ipê enorme (tão enorme que provavelmente seriam necessárias três de mim até alcançar apenas os primeiros galhos) balançam com o vento fresco. O vento parece trazer várias outras declarações de vida: o burburinho de uma conversa eufórica a poucos metros; o aroma suave da própria rosa na minha mão.
Está tudo bem.
Eu não fugi e não estou de fato perdida. Tenho uma rosa vermelha de cheiro doce e uma cidade para conhecer o resto do dia.
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Poeta Das Manhãs
RomanceThomas gostava de filmes do Chaplin quando tinha oito anos e aos doze só lia Machado de Assis. Aos catorze ficou surdo e não conseguia mais tocar piano muito bem. "Não é para sempre" as pessoas diziam. "É tudo um pós-trauma que com muita terapia v...