"Mas não há uma vida sequer em que a pessoa possa existir num estado permanente de felicidade absoluta. E imaginar que existe uma vida assim só acrescenta mais infelicidade à nossa vida." – Biblioteca da Meia Noite.
Anelise
Quem seria o verdadeiro monstro? Eu me pego perguntando vez ou outra. A natureza pecaminosa de todo ser humano parece partir e corromper corações sempre de prontidão.
Andando em nosso meio à espreita sem mais nada para fazer. Tão somente existindo. E eu que também existo às vezes me deixo sentir que talvez não devesse. Não precisasse.
Talvez esse seja o meu erro, não? Não conseguir enxergar o que há de valioso no fundo de mim mesma enquanto vejo através de todo o mundo.
Não queria ser a casa de sentimentos tão ruins, porém eles se alojaram determinantes como vírus. "E tudo aquilo de horrendo que havia na terra tentou contra a minha pele e grudou nela feito a sujeira mais obstinada entre os detritos." dizia um trecho em algum livro do qual não me recordo o título.
Onde foi que me sujei? Afinal, isso importa tanto? Estou tentando olhar para a frente agora e só quero parar de procurar por um lugar onde me desmontar feito várias peças distintas de um corpo errado – quase como em Frankenstein. E começar a procurar por um lugar onde apenas descansar minha alma.
Começo por um pequeno passo. Mais especificamente cento e vinte passos dentro de um grande passo que me levam até uma das cafeterias da cidade.
Não reparo no nome do estabelecimento, mas começo a analisar a decoração do lado de dentro assim que entro. É encantadoramente singular. As cadeiras brancas com ornamentos no encosto me trazem quase tanta paz quanto a sonata de violino número um, de Brahms, que por algum motivo me vem à mente neste momento.
E justamente numa parte crucial da canção que ecoa na minha mente meus olhos pousam no rapaz de óculos de leitura e cabelos escuros. Quase tão escuros como se fossem pintados, mas penso que seja apenas uma questão de luz favorável ou não. Então percebo que já o estou encarando a tempo demais: a forma como ele aparenta estar totalmente alheio aos barulhos em torno da sua mesa, o livro de lombar quebrada em suas mãos. Suas mãos.
Desvio minha atenção para as opções de bebidas geladas na parede de giz. Meu cérebro não absorve absolutamente nada daquilo. Suspiro.
Saio assim que um grupo de estudantes fantasiados entra a todo vapor.
Do lado de fora vejo que há muitas outras pessoas vestidas à caráter para o que entendo ser um desfile – há uma banda marcial, garotas contorcionistas e um boneco inflável gigante que me incomoda o suficiente para que eu não olhe duas vezes.
Caminho na direção oposta da multidão que só aumenta, mas logo dou de encontro com a outra ponta de todo o agrupamento. Então é isso. Vou assistir a um desfile.
Ao desfile do que eu espero ser uma cidade acolhedora pelos próximos meses. Me pego torcendo para que isso não seja o habitual de toda semana. Eu realmente não estou no clima para bonecos gigantes e palhaços.
Ainda sentindo um calafrio percorrer meu corpo com a ideia, continuo caminhando devagar pelo espaço curto e é quando meu campo de visão se torna um pouco mais amplo. Um campo de futebol ainda vazio à esquerda, outro grupo de estudantes eufóricos do meu lado prestes a soltar rojões em plena luz do dia e algumas árvores que provavelmente vão dificultar o processo. E lá está ele de novo. Imerso mais uma vez à toda multidão e vozes que falam por cima de outras. Está de costas para mim, mas reconheço sua blusa de mangas arregaçadas e o óculos de leitura agora enfiado no bolso de trás.
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Poeta Das Manhãs
Roman d'amourThomas gostava de filmes do Chaplin quando tinha oito anos e aos doze só lia Machado de Assis. Aos catorze ficou surdo e não conseguia mais tocar piano muito bem. "Não é para sempre" as pessoas diziam. "É tudo um pós-trauma que com muita terapia v...