"Tenho a estranha sensação de que não sou mais eu mesmo. É difícil colocar em palavras, mas acho que é como se eu estivesse dormindo profundamente e alguém viesse, me desmontasse e rapidamente me montasse novamente. Esse tipo de sentimento." – Sputnik Sweetheart, Haruki Murakami.
Thomas
Ela estava lá. Tão perto que eu poderia tocá-la se me aproximasse mais alguns centímetros. Contudo, a simples ideia disso parece distante e inatingível.
E meu coração novamente se assemelha a algo vigorosamente furioso, como um furacão ou uma tempestade. Ou facilmente os dois ao mesmo tempo. Tudo enquanto tento agir normalmente porque é isso que as pessoas fazem. Não sei como, mas elas agem normalmente, mesmo depois de ter estado dentro de um furacão ou debaixo de uma tempestade. Enquanto estas coisas ainda duram, para mim a sensação é de que nunca vou me recuperar.
Mas então ela sorri de um jeito nervoso e a tempestade passa um pouco.
Tempestade.
Me faz lembrar de um poema de Gonçalves de Magalhães, Noite tempestuosa.
"A tua imagem
Ante mim vaga
Ela me afaga
E com um sorriso
Me faz sorrir."
Em contrapartida ao caos que venho me sentindo por dentro, a situação tem uma alegre leveza desde o início. Os olhos dela ganham uma tonalidade ainda mais forte naquela biblioteca escura e fechada e agora sei que seu nome é Ana.
Algumas coisas começam a fazer um pouco mais de sentido. A inquietação misteriosa de Lorelai logo de manhã e a forma como ela me evitou – minha irmã nunca consegue conter segredos e novidades mesmo que queira muito, então ela apenas foge deliberadamente.
Ana é com certeza a mulher mais linda que eu já vi e eu, também com toda certeza, teria fugido para qualquer lugar contrário se soubesse que ela seria uma nova integrante. Eu já fugi de algumas coisas por muito menos.
Rapidamente me dou conta de que a turbulência e o alvoroço que acontece dentro do meu peito a cada vez que olho para ela não parece algo que eu poderia evitar. Nem mesmo sei se quero.
A sensação me faz pensar num dos dias mais chuvosos de Siena, quando eu era criança, e sentia uma ansiedade imensa em saber que lugares as gotas de água mais intensas estavam alcançando. Destruiriam alguma coisa? Espantariam os animais de rua para um lugar mais inalcançável? Em sua forma urgente, estava suprindo as necessidades da natureza ou era apenas a própria natureza raivosa em ascensão?
No dia seguinte, a chuva tinha causado muitos danos à olho nu. Mas de repente eu só conseguia pensar em toda a turbulência que ninguém viu se passar dentro do rio que, alagado, subiu pela ponte até a altura de nossas canelas.
Era toda uma grandeza à parte, o rio. E eu, desde pequeno, por algum motivo nutrindo calafrios e deslumbramento pela correnteza. Talvez por saber que no fundo, nas minhas profundezas, também havia essa mesma inquietude sufocante.
Tento acalmar todas as minhas ondas sempre que o som da voz dela me embala.
Ela nem mesmo está falando diretamente comigo: sentado ao piano com Eduardo ao meu lado, só a ouço agora num cômodo distante, provavelmente a cozinha.
- Acha que podemos dividir o refrão entre nós dois de uma forma bacana? – Eduardo murmura, em seguida voltando a cantarolar.
Há mais ou menos meia hora decidimos que finalizaríamos qualquer ajuste para aquela canção e também qual seria o papel de cada um. O que na verdade se resume a ele fazendo sugestões semelhantes a que acabou de fazer de dois em dois minutos e eu apenas concordando e anotando coisas na partitura. Toco várias partes soltas de "All You Need To Know" nas teclas do piano para me manter na conversa sem viajar para nenhum lugar dentro da minha cabeça, de onde seja difícil voltar depois.
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Poeta Das Manhãs
Roman d'amourThomas gostava de filmes do Chaplin quando tinha oito anos e aos doze só lia Machado de Assis. Aos catorze ficou surdo e não conseguia mais tocar piano muito bem. "Não é para sempre" as pessoas diziam. "É tudo um pós-trauma que com muita terapia v...