7.Chopin e uma não-jornada do herói

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"Preste atenção nos sinais e não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o amor." – Carlos Drummond de Andrade.

Thomas 

A maioria do pessoal voltou para a casa amarela após o desfile, apenas para conversar ou descansar. Contudo eu não consegui manter uma conversa por mais de cinco minutos em nenhuma das vezes que tentei e me dei por vencido. Quando já estou há um tempo lendo, ou pelo menos tentando, Eduardo se senta ao meu lado no sofá.

- Eu tenho uma proposta para te fazer. – Diz. Ele tenta falar de forma que apenas eu escute apesar de todo o falatório geral já impedir que outras pessoas prestassem atenção.

- Hm? – O encaro, completamente distraído. Percebo que também não saio da mesma página do meu livro há uns vinte minutos. – Desculpe. Estou ouvindo.

- É sobre o sarau. Você e eu. Piano e violão. O que você me diz? – Ele me fita de maneira tranquila.

Instintivamente começo a balançar minha cabeça.

- Não sei...

- Ah, fala sério, Thomas. Você pode cantar muito bem, todos sabem.

- Cantar?!

- Deixo você escolher a música.

Sua expressão costumeira de serenidade de certa forma me irrita, mas parece impossível de se contradizer.

- Como nos velhos tempos. – Ainda conclui.

Eduardo e eu não passamos mais do que um ano juntos no grêmio até que eu saísse, contudo me lembro de sempre ter confiado prontamente nas suas empreitadas. Ele é o tipo de pessoa que parece saber o que está fazendo.

- Está bem. – Suspiro. - Mas podemos escolher a música juntos.

Ele aproveita esse gancho para listar todas as possíveis músicas que ficariam bacanas para a ocasião e para os instrumentos que vamos usar, e só pego uma palavra ou outra no ar porque, meu Deus, eu não consigo pensar em duas coisas ao mesmo tempo. E claramente, já tem uma coisa ocupando minha cabeça a tarde toda. Uma pessoa.

Uma garota que eu só devo ter visto por cinco segundos e que continua irritantemente aparecendo em meus devaneios. Eu já repeti tanto o seu rosto na minha mente que estou começando a ficar com medo de meu cérebro inventar características inexistentes em alguém que vi tão pouco.

Nenhuma das personagens que eu já tenha criado tinham olhos tão vibrantes ou voz tão suave. Eu estudei anatomia, jornada do herói e Shakespeare. Linguística geral, semântica e teoria literária. Para escrever, ensinar, ter uma carreira.

Para agora vasculhar nos fundos da minha memória algo que descreva o que eu vi ou sentencie o que eu estou sentindo e não encontrar absolutamente nada. E tudo. Ao mesmo tempo.

O pensamento simplista de querer ser outro escritor me ocorre por um momento. Alguém que já tenha passado por essa parte. Essa parte em que o seu peito sente como se uma manada tivesse passado por ali, logo depois de um vendaval seguido de um incêndio.

Sempre tem um incêndio.

Mas de qualquer forma, escrever não é a mesma coisa para todo mundo, como num jogo de fases. Não foi a mesma coisa para Balzac e Camões. E com certeza não foi a mesma coisa para Fernando Pessoa e Emily Dickinson.

O desejo de ser outro alguém que não eu mesmo é ingênuo e simultaneamente voraz. É tentador e inalcançável.

Eu poderia ser alguém diferente por um tempo. Poderia inventar toda uma outra vida e não me traria nenhum sentimento de satisfação nesse momento.

Poeta Das ManhãsOnde histórias criam vida. Descubra agora