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Alguns dias depois, a tarde se espreguiça pela janela da cozinha, enquanto eu entro faminta, buscando refúgio no cheiro reconfortante de comida.

— Boa tarde, mãe! —  falo, meu estômago roncando em coro com a minha saudação.

Minha mãe, de costas para mim, mexe em algo no fogão, um sorriso fraco se formando em seus lábios. É um sorriso bonito, mas carrega uma tristeza que me aperta o coração.

— Boa tarde, meu amor. — ela se vira, seus olhos marejados. — Estou terminando de fritar as carnes.

— Aconteceu alguma coisa, mãe? — pergunto, a preocupação me enfiando as unhas na garganta.

Um silêncio pesado se instala na cozinha, como se uma nuvem escura tivesse se abatido sobre nós.

— Seu pai voltou para casa hoje. — ela finalmente diz, a voz baixa e trêmula.

Um nó se forma na minha garganta. A notícia me causa um misto de alívio e apreensão. É bom saber que ele está bem, que se recuperou, mas a sombra do medo paira sobre mim.

Forço um sorriso, tentando disfarçar a angústia que me consome. — Sério? Que bom... —  mas as palavras soam vazias, sem vida.

— A comida está pronta. — ela diz, a voz distante, como se estivesse falando com um fantasma.

A atmosfera se torna densa, carregada de uma tensão que me deixa inquieta.

— Mãe, a senhora está com medo? — pergunto, a voz é quase um sussurro.

Ela assente, com os olhos fixos no fogão, como se estivesse observando um vulcão prestes a entrar em erupção. — Um pouco, filha.

— Vai viajar de novo? — pergunto, a esperança de que ela esteja exagerando me dando um fio de esperança.

— Não. — a resposta é seca, cortante. — Não posso passar a minha vida fugindo e com medo do seu pai. Quero viver perto de você, da nossa família.

— Tem toda razão, mãe. — abro um sorriso, tentando transmitir a força que não sinto. — Acredito que dessa vez, ele realmente tenha aceitado.

— É tudo o que eu desejo, Alice. — ela suspira, se levantando da cadeira, a tristeza em seus olhos me dilacerando. — Vem comer logo.

Me levanto, a comida já não me apetece mais, mas forço a garganta e me sento à mesa. O almoço é um silêncio constrangedor, cada garfada um peso em meu estômago.

Após o almoço, corro para o meu quarto, buscando refúgio no silêncio. Me jogo na cama, a imagem do meu pai me assombrando. Quero acreditar que ele tenha mudado, que nos deixe em paz, mas a lembrança de suas palavras, de seus atos, me impede de ter qualquer esperança.

Mil perguntas martelam na minha cabeça: ele realmente tenha se recuperado? O que ele pretende fazer agora? O que acontecerá com a minha mãe?

Então, acabo adormecendo.

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— Alice! Alice! — a voz da minha avó ecoa do outro lado da porta, um toque leve, mas insistente.

Abro os olhos, sonolenta, o celular piscando na cabeceira, um lembrete cruel de que o trabalho me espera.

— Estou indo! — respondo, a voz ainda rouca do sono. Me levanto, a preguiça me arrastando de volta para a cama. — Obrigada por me chamar, vó, eu não imaginei que dormiria tanto.

— Sem problemas. — ela responde, sua voz suave, como um bálsamo para minha alma.

Entro no banheiro, a água do chuveiro quente me acordando aos poucos. A água escorre pelo meu corpo, levando consigo a angústia e a preocupação.

Após o banho, me visto, a farda me servindo como uma armadura, me protegendo do mundo. Coloco um pouco de maquiagem, tentando disfarçar a palidez do meu rosto, a sombra do medo que me assombra.

Coloco meus fones de ouvido, a música me isolando do mundo exterior, e sigo para o trabalho.  A rotina me traz um falso conforto, mas a cada passo, a imagem do meu pai está me assombrando.

Já acostumei ir sozinha novamente, o que é ótimo. Às vezes, Miguel vai até a lanchonete, mas tenho o ignorado o máximo que posso. Não quero que ele se aproxime. Não quero me machucar mais.

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Já são oito horas. Estou cansada, não consigo parar de pensar no meu pai! Quero de verdade acreditar que meu pai vai nos deixar em paz, porém, no fundo é como se eu soubesse que não vai ser bem assim.

— Aí! — Cinthia grita, a voz estridente, me arrancando do meu devaneio.

O copo de suco de laranja que seguro escorre pela minha mão, o líquido se espalhando por suas roupas. Ela está furiosa, seus olhos faiscando de raiva.

— Você é cega? — ela sibila, a voz carregada de veneno.

Por incrível que pareça, Cinthia se tornou uma cliente frequente, e cada encontro me irrita mais.

— Ainda por cima é mal educada. — Beatriz, a amiga dela, tenta imitar o tom de Cinthia, mas a sua voz artificial me causa apenas nojo.

— Pois é! — Cinthia concorda. — Maria já precisa mudar esses funcionários.

Revirei os olhos, a paciência se esgotando. Me afasto, a raiva me dando forças para seguir em frente.

— Outro suco de laranja. — peço a Maria, minha voz firme, apesar da tempestade que se agita dentro de mim.

— Você parece cansada, querida. — Maria me olha com preocupação, seus olhos gentis me confortando. — Amanhã tire o dia para descansar, pode ficar em casa.

— Obrigada. — sorrio, aliviada com a sua compaixão. Maria é como um anjo.

Após entregar o suco para Cinthia, volto para o meu posto, a noite se estendendo à minha frente como um caminho incerto. O trabalho me mantém ocupada, mas a angústia me consome por dentro.

A Força Do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora