Na penumbra da densa vegetação que cercava o acampamento militar, Unglar, o meio-orc, espreitava com cautela. Seu instinto dizia-lhe para escolher o momento certo de se revelar aos humanos que ali estavam reunidos.
Todavia, a experiência lhe ensinara que nem sempre as coisas saíam como planejado, e cada movimento equivocado podia custar caro.
O preconceito e a desconfiança eram uma constante em sua vida. Desde jovem, almejava conquistar o respeito dos humanos, lutando para provar que era mais do que apenas um mestiço indesejado.
Sua condição de meio-orc tornava-o um pária, rejeitado tanto pelos orcs quanto pelos homens. Para ambos os lados, Unglar era visto como uma aberração, uma anomalia que não pertencia a lugar algum.
Entre os humanos, era considerado uma abominação, o fruto indesejado de um ato impensável. Muitos presumiam que sua existência só poderia ser resultado de um estupro brutal, pois a ideia de uma união consensual entre um humano e uma orc era inconcebível para a maioria. "Afinal", diziam em sussurros carregados de preconceito, "que homem em sã consciência se envolveria voluntariamente com uma fêmea orc?"
Essas suposições e rumores, repetidos incontáveis vezes, haviam se cristalizado em uma verdade aceita pela sociedade. Uma verdade que pesava sobre Unglar, moldando não apenas como os outros o viam, mas também como ele via a si mesmo.
Essa crença alimentava a hostilidade e o preconceito que ele enfrentava constantemente. Alguns acreditavam que era apenas fruto de magia negra, uma criatura arrancada da terra por forças obscuras. Mas Unglar sabia muito bem de onde veio. E, por um breve instante, uma imagem turva tentou se formar em sua mente, uma lembrança fugaz. No entanto, ele sacudiu a cabeça e afastou tais pensamentos, e manteve a atenção voltada para a estrada à sua frente.
O meio-orc guardava para si a verdade sobre sua origem, mantendo-a como um segredo trancado em seu coração. Não tinha esperança de que os humanos algum dia o aceitassem plenamente, mas isso não o impediria de lutar por um lugar ao lado deles, de provar seu valor e encontrar um propósito maior em sua existência.
As missões que já havia completado tinham suavizado, ainda que ligeiramente, o tratamento frio de seus companheiros, e lhe rendido uma pitada de reputação. No entanto, essas missões eram quase sempre extremamente perigosas. Parecia que, para os humanos, sua vida era um risco insignificante, um preço pequeno a pagar. Ele se sentia compelido a demonstrar que estava, de fato, do lado deles, traindo os orcs sem qualquer vestígio de remorso, mesmo quando a recompensa por essas tarefas de espionagem era um mero aceno de reconhecimento ou um agradecimento tímido.
No fundo, ele se sentia deslocado, não conseguindo se identificar plenamente nem com os homens, nem com os orcs. Não se recordava do momento exato em que escolheu se aliar aos humanos. Sua aparência sempre pendeu para o lado orc: grande e forte como um touro, com dentes salientes que se projetavam de sua boca larga, formando uma expressão intimidadora. Seu rosto, marcado por feições duras e determinadas, era frequentemente comparado a um orc do avesso, uma ofensa que ele escutava com frequência, principalmente das crianças, que sempre se mostraram surpreendentemente cruéis em suas zombarias. Entre os orcs, ele era visto como meio homem e era rejeitado com igual intensidade.
Agora, diante do acampamento militar, Unglar decidiu que era hora de se revelar.
Contudo, antes que pudesse se mover, um ruído vindo da floresta chamou sua atenção. A luz crepuscular da floresta dançava com as sombras, criando um mosaico de movimentos e padrões que somente olhos treinados poderiam discernir. Parou subitamente, seus sentidos aguçados captando um som que lhe pareceu familiar.
Era uma sinfonia da guerra que se aproximava. O ranger metálico de armaduras ecoava pela noite, misturando-se ao tilintar sombrio de espadas embainhadas. O ritmo cadenciado de botas pesadas esmagando folhas secas e galhos caídos criava uma marcha funesta através da floresta densa.
Unglar reconheceu imediatamente: apenas uma comitiva militar produziria tal combinação de sons. Seus músculos se retesaram instintivamente, e ele se agachou com a agilidade de um predador experiente. Fundindo-se ainda mais com as sombras e a vegetação, o meio-orc se tornou praticamente invisível, seus olhos atentos fixos na direção dos sons que se aproximavam.
Os homens surgiram entre as árvores, carregando consigo um imenso escudo de corpo inteiro. Sobre o escudo, jazia um corpo coberto por um manto grosso, apenas a ponta de uma bota ornamentada revelava a presença de um morto. O silêncio solene que os acompanhava era um testemunho do respeito que o falecido evocava. Mesmo exaustos, os soldados se moviam com determinação, ombros arqueados pelo peso do fardo que carregavam.
Observou por um momento, avaliando suas opções. Ele sabia que poderia se revelar ali e correr o risco de ser rejeitado ou pior, atacado. Ou poderia escolher um caminho mais astuto, o caminho que o permitiria demonstrar sua vontade de ajudar sem se expor completamente.
Tomando uma decisão, Unglar deslizou silenciosamente para trás da comitiva. Seus olhos, fixos e determinados, não deixavam os homens que carregavam o pesado escudo. Com movimentos cautelosos e precisos, dignos de um caçador experiente, ele se aproximou do grupo.
Seus músculos, embora poderosos, protestaram com o esforço de se mover tão lentamente. Unglar, no entanto, ignorou a dor, focado em seu objetivo. Chegando perto o suficiente, ele estendeu as mãos calejadas e agarrou a parte de trás do escudo.
Com um gesto sutil, mas claro, sinalizou para um dos homens mais exaustos se afastar. O soldado, surpreendido pela aparição repentina do meio-orc, o encarou por um instante. A surpresa era evidente em seus olhos cansados, misturada com uma ponta de desconfiança. Contudo, o alívio de ter ajuda para carregar o peso esmagador do escudo superou qualquer hesitação. Com um aceno quase imperceptível de gratidão, o soldado recuou, cedendo seu lugar a Unglar. O meio-orc assumiu a posição, fundindo-se à comitiva como se sempre tivesse feito parte dela.
Com o rosto escondido pela sombra do escudo, Unglar seguiu em silêncio com a comitiva, mais uma sombra entre as sombras, um fantasma carregando o peso dos mortos. Ele podia sentir os olhares curiosos sobre ele, mas ninguém ousava falar. E assim, ele conseguiu entrar no acampamento, escondido em plena vista, uma presença enigmática cujo verdadeiro rosto seria revelado apenas quando o momento certo chegasse.
Entendia que, naquele momento, era melhor ficar em segundo plano, oferecendo sua força e apoio sem chamar a atenção para si. Ele estava ali para honrar o falecido e demonstrar que, apesar de sua aparência incomum, ele também era capaz de se importar e fazer a diferença.
Enquanto prosseguia na caminhada ao lado dos soldados, Unglar sabia que aquele era apenas o começo de uma jornada que o levaria a enfrentar desafios ainda maiores. Mas ele estava determinado a provar seu valor, superar as expectativas e encontrar seu lugar nesse mundo, mesmo que isso significasse lutar contra o preconceito e a desconfiança que o rodeavam.
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O Avatar de Gaia
FantasyNo ano 277 da era da Aurora, o outrora majestoso reino de Asten jazia em ruínas, engolido pelas sombras de uma guerra implacável. O que começou como um sussurro inquietante nos confins do império, ignorado pela arrogância dos poderosos, agora rugia...