O Canto da Onça

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O vento úmido que soprava pela floresta parecia carregar algo mais do que chuva. A cada passo, a terra molhada afundava sob os pés de Aruanã, e as folhas dançavam ao redor de seus tornozelos, como se a mata tivesse vida própria. Ibiraci, sempre atento aos menores sinais, parava com frequência, inclinando a cabeça para escutar os sons que vinham de longe.

"Você está ouvindo isso?" Ibiraci sussurrou, o rosto concentrado, com os olhos fixos no horizonte da floresta.

Desta vez, Aruanã parou. Fez silêncio, seus ouvidos atentos aos barulhos ao redor. O farfalhar das folhas, o chiado do vento... e então, algo mais. Um canto baixo, quase imperceptível, ecoava entre as árvores. Não era o som de pássaros ou de animais que ele conhecesse. Era algo mais profundo, como um lamento distante.

Ibiraci lançou um olhar rápido a Aruanã, e seus olhos, normalmente calmos, estavam mais tensos do que o normal. "Minha avó contava que esse som era o canto da onça... o aviso de que a floresta está inquieta."

Aruanã engoliu em seco. Ele já ouvira essa história antes, mas nunca presenciara o tal canto. Segundo a lenda, quando o espírito da onça chorava, era um sinal de que os humanos tinham perturbado o equilíbrio natural da floresta. E quando isso acontecia, a mata se voltava contra eles, fazendo com que as criaturas mais temidas acordassem para proteger o território.

"Será que estamos fazendo algo errado?" Aruanã murmurou, sem querer admitir o leve arrepio que subia por sua espinha.

Ibiraci deu de ombros, mas o gesto era rígido, os dedos apertando o colar ao redor de seu pescoço. "Talvez não nós... mas alguém. Meu avô diz que os homens da cidade sempre trazem perturbação."

Eles continuaram a caminhar, desta vez mais devagar, atentos ao som. A chuva fina caía ao redor, criando pequenos rios de lama pela trilha. Aruanã seguia de perto, as sobrancelhas franzidas, e por vezes, seu olhar ia até o amigo, que parecia mais concentrado e distante do que o normal.

"Ei..." Aruanã tocou o ombro de Ibiraci, fazendo-o parar de repente. "Se isso for real, você acha que a gente corre algum perigo?"

Ibiraci virou-se para ele, e por um instante seus olhos escuros estavam cheios de uma preocupação silenciosa. Ele soltou o colar devagar e respondeu, mas sua voz saiu suave, quase como uma promessa. "Eu não vou deixar nada acontecer com você."

A resposta rápida e firme pegou Aruanã de surpresa, e ele sentiu o peito apertar de uma forma que não sabia explicar. Ele assentiu com a cabeça, meio desajeitado, e deu um passo para mais perto de Ibiraci, a mão ainda no ombro do amigo, como se aquele toque pudesse acalmá-los.

"Se o espírito da onça está por aqui, a gente vai enfrentá-lo juntos," Aruanã brincou, com um meio sorriso tentando aliviar a tensão. "E eu sou bem mais rápido do que você!"

Ibiraci soltou um riso curto, que logo desapareceu no som da floresta. "Você sabe que o espírito da onça não pode ser derrotado com velocidade... mas é bom saber que você está preparado." Ele balançou a cabeça, mas o canto baixo da onça ainda os envolvia, tornando o ar mais pesado.

Conforme caminhavam mais para dentro da floresta, Ibiraci começou a contar outra lenda que sua avó lhe dissera quando ele era pequeno. "Dizem que a onça, quando está inquieta, manda suas marcas para os mais bravos da aldeia. Antigamente, os guerreiros que conseguiam passar pela prova do espírito recebiam uma marca, que os tornava protetores das matas. Mas essa prova nunca era fácil... e nem todos sobreviviam."

Aruanã se aproximou mais de Ibiraci, agora quase andando lado a lado. As palavras do amigo, ainda que ditas em um tom tranquilo, carregavam um peso. Ele observava o rosto de Ibiraci, notando o leve franzir de suas sobrancelhas, e sentiu uma vontade de proteger o amigo, de tirar o fardo de preocupação que parecia pesar sobre ele.

"E você... acha que seria marcado pela onça?" Aruanã perguntou, quebrando o silêncio que se estendia entre eles.

Ibiraci sorriu de canto, mas sem desviar os olhos da trilha. "Acho que eu prefiro ficar com as marcas que já tenho. Não preciso de mais."

Eles se olharam por um momento, e Aruanã soltou uma risada leve, que acabou sendo abafada pelo vento. Ele empurrou de leve o ombro de Ibiraci, em um gesto brincalhão. "É, você já é teimoso o suficiente sem a ajuda de espíritos."

Eles pararam de andar quando a chuva ficou mais forte, se abrigando sob uma árvore alta. Enquanto esperavam a tempestade diminuir, Aruanã se sentou no chão de folhas secas, recostando-se no tronco da árvore. Seus olhos seguiram o movimento de Ibiraci, que permanecia de pé, as costas retas, como se estivesse em alerta o tempo todo.

"Você pode relaxar um pouco, sabia?" Aruanã disse, batendo de leve no espaço ao lado dele. "Se a onça estiver por aqui, tenho certeza de que não vai nos pegar agora."

Ibiraci hesitou, mas depois se sentou ao lado de Aruanã, os joelhos dobrados e os braços repousando sobre as pernas. O som da chuva preenchia o silêncio entre eles, mas de uma forma estranha, aquilo trouxe uma calma que os dois não tinham sentido até agora. As gotas escorriam pelas folhas acima, caindo vez ou outra sobre seus rostos, e Aruanã fechou os olhos por um segundo, sentindo a brisa fria tocar sua pele.

Por um momento, nenhum deles falou, apenas ouviram o som da chuva e o ritmo das respirações.

"Você sempre carrega o peso de tudo sozinho, né?" Aruanã quebrou o silêncio, ainda com os olhos fechados. "Eu tô aqui, sabe. Sempre vou estar."

Ibiraci não respondeu de imediato, mas o leve sorriso que apareceu no canto de seus lábios foi mais do que suficiente para Aruanã saber que o amigo havia entendido. As mãos de Ibiraci, que antes seguravam o colar com tanta força, agora estavam relaxadas sobre os joelhos, e ele virou o rosto para Aruanã.

"Eu sei."

A chuva começava a enfraquecer, e o som do canto da onça se afastava, como um eco distante que lentamente desaparecia. O perigo, pelo menos por agora, parecia ter passado. Mas, entre eles, algo havia mudado — um entendimento silencioso, um laço ainda mais forte.

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