|𝟎𝟓 𝐎 𝐑𝐞𝐟𝐮́𝐠𝐢𝐨|

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Eu não sabia bem para onde estava a ir, mas precisava de espaço

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Eu não sabia bem para onde estava a ir, mas precisava de espaço. Precisava fugir de casa, que, no final das contas, só me sufocava. A presença da minha mãe, o peso da doença, as mudanças de humor... era tudo demais. Mais uma vez, ela oscilava entre a tristeza profunda e o ataque de fúria. As palavras que ela lançava contra mim eram piores que socos, e quando não eram as palavras, eram as coisas que voavam pelo ar, quase sempre na minha direção.

Hoje foi um desses dias. A tristeza, o silêncio opressivo, seguido pela explosão. Não podia ficar mais lá. Não depois ela ter atirado o prato contra a parede e ter dito que queria que eu tivesse ido com o meu pai.

Essas palavras perfuraram-me o peito como facas. Faziam eco na minha mente enquanto acelerava pela estrada. A dor, o cansaço de carregar o fardo que ela representava desde que o meu pai morreu... e o colapso de não estar em casa, mesmo que isso viesse acompanhado por uma culpa sufocante.

A moto rugia sob mim, o som a cortar o ar frio da noite. A velocidade era a única coisa que acalmava meus pensamentos. A única coisa que me fez esquecer, ainda que por um breve momento, tudo o que estava errado na minha vida. As colinas à minha volta eram um bom esconderijo. Um refúgio. Longe do caos de casa, longe das perguntas da minha mãe sobre por que não sou o meu pai, longe das suas expectativas e da sua dor.

Foi então que a vi.

Uma moto estava estacionada à distância, com as luzes apagadas, e uma figura sentada no chão, com o capacete ainda colocado. A princípio, pensei em seguir adiante, em continuar a minha fuga solitária. Mas algo me fez parar. Havia algo na maneira como ela se mantinha ali, imóvel, quase como se fosse parte da paisagem, mas ao mesmo tempo tão separada de tudo. Como se o peso do mundo estivesse a cair sobre os seus ombros... Era uma cena que me parecia familiar.

Eu não confiava facilmente em mulheres. Não depois de anos a lidar com os ataques imprevisíveis da minha mãe. Mas essa rapariga... algo nela era diferente. Ou talvez fosse apenas a solidão que reconheci, a mesma que me consumia. Não queria me aproximar, mas também não queria deixá-la ali sozinha. Sabia como é carregar tanto peso em silêncio.

Estacionei a moto a uma distância segura e caminhei até ela, a tentar não parecer ameaçador. Cada passo era um conflito interno — uma parte de mim queria ficar longe, manter-se isolada. Outra parte, talvez mais ferida, queria acreditar que havia espaço para algo além do medo.

Quando aproximei-me, percebi que era uma rapariga. Mesmo através do capacete, podia sentir a aura de solidão que a rodeava, como se ela estivesse num mundo completamente à parte, sem espaço para mais ninguém. Queria dizer alguma coisa, mas não sabia o que. As palavras que vinham à mente eram vagas, vazias.

"Estás bem?" arrisquei, a minha voz mais baixa do que pretendia. Queria oferecer alguma coisa, mas também estava preparado para ser rejeitado.

"Estou" respondeu ela, seca, quase automática. Não acreditei, mas quem sou eu para questionar?. A verdade é que eu também mentiria se alguém me perguntasse o mesmo.

O silêncio voltou a cair entre nós, mas não era desconfortável. Era como se ambos soubéssemos que havia um peso, mas que não precisávamos falar sobre ele. Olhei para a cidade abaixo, as luzes a piscar ao longe. Pareciam tão distantes, tão indiferentes ao que se passava dentro de nós.

"É curioso" comecei, sentindo as palavras fluírem antes de as poder conter. "As pessoas vêm a lugares como este para fugir. Mas o que quer que seja que as persegue... acaba sempre por encontrá-las."

"Talvez" respondeu ela, sem se comprometer. O tom dela era o mesmo de antes — indiferente. Eu entendia. Aquele "talvez" carregava a mesma resignação que eu sentia.

"Conheço essa sensação" confessei, sem perceber que estava a falar mais do que pretendia. O peso da minha própria confusão e da minha dor começou a se infiltrar. Cuidar de alguém que não quer ser cuidado... isso muda uma pessoa. Torna-nos duros por fora, mas por dentro... ainda dói.

Ela virou um pouco a cabeça na minha direção, mas não tirou o capacete. "O que fazes aqui?" perguntou ela, com uma curiosidade contida. Estava claro que ela não queria baixar as defesas, e, de certo modo, isso me fez sentir um pouco mais seguro. Não estávamos a tentar invadir o espaço um do outro.

"Eu?" hesitei. Quanto devia dizer? Quanto era seguro partilhar? Eu estava ali a fugir. A tentar processar o caos da minha vida. Mas isso parecia tão... banal. "Também estou a fugir de algo... Ou a tentar processar, pelo menos. Às vezes, isto é tudo o que se pode fazer."

Ela assentiu, mas não disse mais nada. E eu estava bem com isso. Não havia necessidade de perguntas. Não havia necessidade de saber mais.

"E tu?" perguntei, virando a questão para ela, mas sem esperar uma resposta detalhada. "O que estás a fazer aqui?"

Ela hesitou por um momento, mas respondeu com simplicidade. "Só precisava... de me afastar."

A sua voz soava tão cansada quanto eu me sentia. Era como se estivéssemos a carregar o mesmo peso, mesmo sem conhecer as histórias um do outro. Assenti, tentando oferecer algum tipo de conforto, ainda que minúsculo. "Às vezes, lugares como este ajudam a colocar as coisas em perspectiva" disse, a minha voz baixa, quase num murmúrio. "Pelo menos, ajudam-me a lembrar que o mundo é maior do que os problemas que carrego."

Ela não respondeu de imediato. Ficamos em silêncio novamente, e era como se as nossas dores encontrassem eco uma na outra. As palavras tornaram-se desnecessárias.

"Mas, no fim" continuei, sabendo o quão verdade era para mim, "não importa o quão longe vamos ou quão altos subimos... aquilo de que fugimos continua lá. Espera-nos."

Ela virou mais um pouco a cabeça, ainda escondida pelo capacete. "O que fazes quando não há para onde fugir?" perguntou, a sua voz suave, quase apagada pelo vento.

Suspirei, a resposta a pesar-me nos lábios. Eu também não sabia ao certo. Mas havia uma verdade que me agarrava. "Talvez a resposta seja... não fugires. Talvez a solução seja enfrentares o que te persegue."

O silêncio entre nós era profundo. As palavras que dissemos pareciam carregar mais do que o que estava explícito. Estávamos ambos a fugir de algo, ambos a lutar com o nosso próprio caos.

"O que quer que seja" acrescentei, com mais firmeza, "não tens de enfrentá-lo sozinha." Era uma promessa que eu não sabia se podia cumprir, mas parecia certo dizê-lo. Porque, de certo modo, era o que eu também precisava ouvir.

Ela olhou para mim, os seus olhos a encontrar os meus por entre a abertura do capacete. E, por um momento, a dor dela parecia tão próxima da minha que me senti vulnerável. Não conseguia ver o resto do seu rosto, mas os olhos... havia algo neles que me conectava a ela.

"O mundo continua a girar" disse ela, a sua voz suave, quase resignada. "Mesmo quando o nosso para."

Assenti. "Sim. E, de alguma forma, temos de encontrar uma forma de voltar a acompanhar o ritmo."

Ficamos ali, sentados em silêncio. Não havia mais nada a dizer, mas de alguma forma, sentia que entendíamos mais um do outro do que qualquer pessoa que eu conhecia há anos. E, por um breve momento, o peso que ambos carregávamos parecia um pouco mais leve.

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