Conexões interestaduais.

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Conforme o tempo vai passando e a data prevista pra finalização do projeto se aproxima, o terror pré inauguração se instala no meu corpo sem pressa de ir embora.

Essa reta final é, sem rodeios ou exageros, a pior parte para qualquer pessoa envolvida na criação, desenvolvimento e execução como um todo. É só estresse, dor de cabeça, confusão e brigas. Muitas brigas.

Hoje as obras do Alkemius BA foram oficialmente finalizadas, mas somente as obras — parte hidráulica e elétrica, chão e teto, porcelanatos e pedras. A estrutura do restaurante está completa, novinha em folha, em perfeito estado, revisada por empreiteiro e arquiteto e aprovada por toda a equipe, deixando o sinal verde para avançar pro próximo passo: a transportação.

Como antes mencionado, o Alkemius segue todo um padrão de qualidade para funcionar harmonicamente e as nossas louças da casa não seriam diferentes. Todas as taças, cerâmicas, talheres e demais utensílios são assinadas por uma marca, uma única coleção, uma linha exclusiva.

Tá, confesso que eu fico de fato um pouco chato quando o assunto é falar do meu restaurante... E talvez chato seja pouco. Mas olha só, é meu sonho da vida adulta combinado com o sonho de infância da minha mulher, que é mais apaixonada por ele do que eu, então eu acredito que isso me dá uma certa licença poética. Perdão.

Enfim, voltando, o estresse de hoje foi devido a transportação (e o não) recebimento das louças, vindas diretamente do interior de São Paulo pra cá, cosmópole da Bahia. Não foi minha primeira vez lidando com essa situação, nem foi a pior experiência com essa empresa, mas olha, vou te falar, dessa vez...

O caminhão se perdeu, o caminhoneiro não dava sinal de vida, um outro acidente na estrada me fez pensar que todo o carregamento tinha ido pro lixo, e ninguém, absolutamente ninguém sabia o que fazer pra resolver isso. Foi uma tarde turbulenta.

A Maristela, coitada, danou a chorar porque percebeu que isso atrasaria tudo, logo a gastrite nervosa dela só ia se estender (efeitos do empresariado na vida de um civil) e passou cerca de quarenta minutos aos berros e prantos no telefone com alguém que eu não sei nem se conheço.

Digo isso porque eu estava ocupado com o meu próprio inferno astral, vulgo os operadores de telemarketing da transportadora, insolentes de natureza, completamente putos da cara comigo por nenhum motivo aparente! Quer dizer, por causa do suposto acidente na estrada, eles ligaram isso à mim e a minha entrega e decidiram que eu não merecia saber de nada.

Pro azar deles eu sou um chato de galocha quando quero, então não parei de ligar até que eles cedessem pelo cansaço, e lá pelas dez da noite eu recebi a primeira notícia do caminhoneiro perdido e a carga sumida: dormiu demais na estrada. Deve ter acordado zonzo, confuso e com o telefone pipocando, desligou o aparelho e voltou a dormir, por isso passou tantas horas fora de área.

E os colegas lá da terceirizada, nem querendo saber de mim, não quiseram rastrear o paradeiro do cabra... como eu disse: inferno astral.

Mas de maneira geral, apesar dos pesares e perrengues, aos quarenta e cinco do segundo tempo tudo acabou bem. O José Cleto, o preguiçoso que carregava meus bens mais preciosos, me ligou ele mesmo pra dizer que ao meio dia do dia seguinte estaria na porta do restaurante, prontinho para entregar tudo.

Só naquele momento eu respirei aliviado e soltei o ar que prendi o dia todo. Ele me pediu inúmeras desculpas, se explicou todo, fez promessas e mais promessas e depois desligou. Acabei caindo no carisma do caminhoneiro e por uns minutos esqueci da raiva que passei durante o dia, mas contando o desfecho pra patroa ela não teve o mesmo pensamento.

— Isso não é engraçado, Alexandre. — séria, seríssima, cortando todo o meu barato e minhas risadinhas meio sem humor.

— Eu sei que não, minha linda... mas se a gente não rir, vai fazer o que?

— Quase tive um ataque de nervos, sô. Tomei quinze comprimidos de omeprazol, meu fígado pode colapsar! — afundou o rosto nas mãos enquanto se jogava na minha direção, e eu abracei ela contra meu peitoral com força.

— Eu sei, eu sei. Nem fale, eu mesmo quase desisti de tudo. — depositei um beijo no topo de sua cabeça, acariciando os fios escuros.
— Mas deu tudo certo, linda. Esquente mais a cabeça com isso não, tá? Se tá comigo, tá com Deus.

Segurei seu queixo pra trazer ela até mim, mergulhando de cabeça no fundo daqueles olhos azuis, esperando só o tempo certo pra fechar a distância entre nós com um beijão daqueles. Desnorteada e meio sem fôlego, ela não sabia se queria mais ou se fugia, se atirando em mim como quem buscava água mas não tinha medo do fogo.

Uma pena que, conforme o clima esquentou pra ela, a coisa pra mim esfriou.

— ... calma, coisinha. Cê não disse que ia dormir cedo hoje? — péssimo, horrível, ridículo, mas pelo menos ajudou a desfazer aquela névoa de luxúria que se formou sob a cabeça da Maristela.

— Que? Tá me rejeitando, Alexandre? Justo hoje?

Justamente hoje. Esse cortisol todo não me fez bem, essa enxaqueca não tá nem me deixando concentrar em você direito... — amoleci pra ver se ela se compadecia, como um covarde, beijando-lhe o rosto para amenizar.

— Hm. Tá bom. Mas essa sua dor de cabeça só tende a piorar, então vê se toma um dipirona, viu? — dois tapinhas fracos no meu rosto e um beijo depois, a moça deslizou fora do meu abraço, caminhando para a mesa de cabeceira a procura da tal pílula milagrosa.

Suspirei fundo. Nem acreditei nas minhas próprias ações, questionando minha sanidade e minha masculinidade, claro, mas no fundo no fundo eu sabia bem a razão daquele afastamento.

— Ih, acho que acabou... Não tô achando nem aqui e nem na bolsa, uai. — revirava tudo nas quinhentas bolsas de pano diferentes que ela tinha, carteiras e bolsos também. — Quer que eu vá lá na farmácia rapidinho 'procê?

— Precisa não, cheirosa. Você acabou de sair do banho, ainda tá fresquinha e quentinha. — caminhei até ela só pra resgatar minha carteira do meio daquela bagunça, aproveitando o gancho pra beijar a testa dela. — Vou lá num pé e volto no outro.

— Se for nos dois, vai mais rápido. Some!

Preciso nem ser mandado duas vezes, lá fui eu. Preferi ir caminhando a pé e deixei o carro que alugamos por lá mesmo, na casa de temporada também alugada, decidido a andar pelas ruas até esfriar a cabeça e tirar um pouco da tensão do corpo.

Quando eu usei a dor de cabeça como desculpa, não foi uma mentira completa; realmente passei cerca de 10 horas seguidas sentindo pontadas na nuca e um latejar que a cada suspiro se intensificava, e cada minuto que passei consciente no dia de hoje piorou meu estado.

Mas... fiquei balançado depois daquele tal encontro.

Balançado não é bem a palavra, mas procurar uma certa que defina essa sensação é difícil.

Eu não tenho sentimentos pela Giovanna, não mesmo, esse trem já saiu da estação e eu acredito fielmente que nossa fase já passou. Mas sabe aquele ditado bobo que diz que assunto mal resolvido volta pra te morder? Então...

Ela não me mordeu ainda, e espero mesmo que não faça, mas o modo em que as coisas acabaram entre a gente deixou muitos assuntos inacabados perdurando por entre as paredes do meu cérebro.

E talvez seja algo só meu, uma nerose minha que só existe aqui dentro. Mas também pode não ser.

Não sei, nunca saberei. Passei cinco anos sem absolutamente nenhuma notícia da Giovanna, tornando meio que impossível a minha dedução sobre qualquer assunto relacionado à ela.

O tópico Giovanna Antonelli se tornou proibido, de forma silenciosa e discreta, e até o fim dessa viagem deverá se manter assim. É pelo bem maior.

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