As tribulações mundanas.

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Lei de Murphy: um comentário ácido e pessimista sobre o Universo que diz: "tudo o que puder dar errado dará, do pior jeito possível, na pior hora possível".

Ou seja, explicando por altos, a minha viagem ainda tinha muito mais chances de ser arruinada, por diversas pessoas, diferentes modos, razões e etc.

Tá, falando desse jeito pode parecer que eu estou detestando cada minuto dessas férias, mas eu garanto que não é esse o caso. A questão é que com todas as expectativas lá no alto, eu esqueci de um detalhe importante e muito decisivo pra minha vida: o quanto sou azarada.

O contexto é o seguinte: minha filha Clara decidiu, sem aviso prévio, que adoecer no terceiro dia de viagem seria uma boa ideia.

Essas pequenas batalhas são especialmente difíceis pra mim porque além de todo o estresse que uma criança doente pode proporcionar a uma mãe, minha angustia é duplicada, afinal de contas eu sou mãe de gêmeas. Então, cuidando da Clara, preciso também me certificar de que a Carolina não vai se infectar com o que a irmã tem.

Uma criança doente na praia é dificil, mas aceitável. Duas? Sem chance!!!

A princípio não botei tanta fé que fosse algo grave e muito menos contagioso. Os principais sintomas dela foram a febre (que eu aposto meu diploma que se trata de febre emocional) e muito, muito dengo. Ela disse que sentiu dores de cabeça também e eu a mediquei, mas uma criança de quatro anos não sabe bem o que é uma dor de cabeça, né?

De qualquer forma, como eu disse, a mediquei e tratei como trataria em qualquer outra ocasião. Avisei também o Vinícius que, se piorasse, eu a levaria ao hospital e ele ficaria com os cuidados da gêmea boa, Carolina, e meti um terrorzinho nele pra que ele ficasse esperto. A mãe não merece sofrer sozinha.

E sobre essa febre emocional... preciso me lembrar que estamos vivendo dias intensos em um lugar desconhecido por ela, com pessoas novas e novos costumes, um clima diferente e totalmente estranho ao seu corpo. Fora a quebra de rotina, que também influencia bastante no comportamento das meninas, que nessa idade só estão acostumadas a seguir os mesmos compromissos todos os dias. E eu, ao invés de preparar as duas antes de viajar, decidi que viríamos um dia antes de embarcar no avião...

Sou parcialmente culpada.

E mais, ela passou tanto tempo na piscina ontem com a irmã que eu suspeito que o cansaço bateu e ela se assustou, sei lá. Só sei que nessa madrugada ela me procurou, pediu dengo da mãe e do pai, chorou e logo pela manhã eu vi o quão xoxa ela estava. Conheço esse meu mini furacão e sei quando ela está mais abatidinha, porém até então a febre ainda não tinha aparecido.

Separei ela da Carolina por precaução e isso pareceu piorar o caso, já que as duas são grudadas até demais. Porém lá pelas nove e meia da noite, depois de muitos cochilos cortados e muito carinho da mamãe, ela acordou febril. Não saiu do meu colo, não quis comer nada e nem se levantar da cama... aí eu me desesperei. Decidi que levaria ela ao hospital nem que fosse para tomar dez gotinhas de remédio.

Mas aí veio a quinta batalha do dia: explicar pra ela, chorando feito uma órfã de guerra, que era realmente necessário tomar um banho para se arrumar e ir pro hospital, quando ela nem queria colocar os pezinhos no chão. Isso enquanto eu procurava um hospital perto de mim sem deixar o desespero tomar conta de mim.

Eu conheço Salvador mas não conheço desse jeito, logo precisei consultar o google e a recepção do resort, sendo obrigada a deixar de lado todos os meus critérios e retrições, me decidindo pelo que fosse mais rápido.

Peguei os nossos documentos e parti pro primeiro que me pareceu aceitável, com um olho na cadeirinha do carro e o outro na estrada, hora escutando os comandos do GPS e hora escutando os pedidos manhosos da minha filha enferma.

E há quem diga que a vida da mãe é fácil...

Mas o restante dessa aventura não vale a pena ser contado, porque assim que eu botei os pés dentro do consultório da médica, a Clara simplesmente melhorou. De tudo.

— Dra. Inez, eu juro que essa criança passou o dia inteirinho sofrendo... — Expliquei a pediatra simpática do plantão, morta de vergonha, preferindo mais sair daquele hospital direto pro aeroporto.

— Eu sei bem como é, mãe. Já vi isso muitas vezes. — por entre risadas ela ainda examinava a Clara, que numa hora dessas gargalhava alto pela sensação gelada do estetoscópio no abdômen dela.

— Chorou, não quis comer, teve febre, tudo que eu te falei. Fazia tempo que eu não via ela murcha assim, sabe? E ficou longe da irmã, então pensa na birra...

— Mas agora tá quase botando a baixo meu consultório, né? — bagunçou os cabelos dela com um falso olhar de repreensão, muito doce e cheia de paciência.

E por falar em doce, a Clara saiu de lá com três pirulitos na mão. Três!!! A mesma criança que passou o dia inteiro jogada na cama, derretida, sem ânimo e vontade de nada. Dá pra acreditar? Não dá!

— É comum isso acontecer, sabia? Em alta temporada eu geralmente recebo algumas crianças com esses mesmos sintomas, principalmente quando são estadias mais longas, que nem o seu caso, né? — enquanto explicava ela auxiliava minha filha a descer da maca, caminhando até sua mesa.

— Eu não fazia ideia. E entrei em pânico porque fiquei com medo da Carolina, gêmea dela, sentir as mesmas coisas... 98% das vezes elas adoecem juntas, são raras ocasiões que não.

Enquanto que eu agasalhava a pequenina de novo ela escrevia no receituário, me cobrindo de palavras reconfortantes para trazer mais segurança ao meu coração claramente baqueado pelo susto.

Enfim. A médica liberou a gente depois de ter certeza que a tal dor de cabeça não era real mas receitou um remédio para cuidar da misteriosa febre. Eu relutei a princípio porque minha filha não me dava motivos para acreditar que aquilo ali não era teatro, mas a Dra. Inez me lembrou que crianças são caixinhas de surpresas e basta uma brisa gelada noturna pra que, o que até então era emocional, se tornar muito físico. Preferi não arriscar.

Na volta pro resort, vaguei pelas ruas buscando uma farmácia aberta. Me surpreendi quando percebi que as coisas por aqui fecham as portas tão cedo, até mesmo as farmácias, e foi uma batalha a parte encontrar uma que ainda funcionava. Cogitei a atravessar alguns bairros pra tentar a sorte por lá, ligeiramente desesperada, mas depois de algumas voltas ao redor de Itapuã eu encontrei uma mega farmácia aberta e com trezentas luzes piscando, me convidando para entrar.

E entrei com uma única missão: o remédio pra febre da Clara.

Mas se tratava de um território inimigo, um campo minado, cheio de tentações e distrações, promoções e estímulos, tudo que uma mãe cansada precisa depois de um dia de cão desses...

E enquanto eu esperava a atendente buscar o remédio numa prateleira superior, fui bisbilhotar as cores de esmalte. Um rosa choque chamou minha atenção, e mais ainda do tsunami mirim que eu carregava comigo, já no chão, caminhando com suas próprias pernas tentando explorar cada canto daquela farmácia sozinha.

— É? Você quer mesmo pintar seu cabelo de vermelho escuro? — arqueei uma sobrancelha pra ela, que segurava uma caixa de tinta cor Marsala.

— Preciso checar com seu pai antes. — fingi pensar, sentindo meus braços arrepiarem com a ideia e o futuro distópico chamado adolescência. — Mas amanhã a gente vê isso, princesa!

Feito um cachorrinho abandonado ela caminhou pra devolver, e eu fui chamada pela farmacêutica. Entreguei a receita, peguei duas caixas por precaução e me entretive com uma conversa fiada. Contei pra ela, Alice, que aquela criança que tentava derrubar todas as prateleiras algumas horas antes estava com febre...

E por falar nela, cadê ela?

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