VENCEDOR DO WATTY AWARDS 2018 NA CATEGORIA CRIADORES DE MUDANÇAS
Para Kurt Young, a vida sempre foi dura. Mas o ruim conseguiu se tornar pior desde que ele saiu de casa com o carro que roubou do pai. Longe do subúrbio onde foi criado, ele se arrisco...
Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
A água quente do chuveiro doía. Fazia parecer brasa caindo. A sensação era de ter a faca cutucando de novo no fundo de cada ferimento em seu corpo. Embora quente debaixo da queda d'água, Kurt tremia como se fosse frio, mas era dor.
Ninguém o obrigou àquilo, a não ser ele mesmo. Apertando os azulejos úmidos com a ponta escorregadia dos dedos, Kurt deixava que a água escaldasse suas feridas, levando embora aquela sujeira que só existia em sua cabeça. O rosto tombado para baixo trazia o cabelo mal cortado para baixo, fios leves se tornando pesados. Água escorria da ponta do nariz e pingava do queixo. A poça debaixo de seus pés tinha tons de vermelho claro, o sangue arrancado das feridas vivas. Um lembrete de como Kurt estava em ruínas, mas de como também estava vivo; de como tinha sobrevivido.
Levou mais tempo do que levaria em um banho normal. Kurt apenas desejou que Nash não reparasse no quanto ele estava demorando, na quantidade de água que estava gastando. Aquele era um momento que ele realmente precisava. E quando pareceu o bastante, ele torceu devagar o registro de metal, para deixar que até a última gota o lavasse. Sua pele ainda queimava depois disso, esfolada.
Quando saiu do box, uma névoa branca e densa cobria tudo. O vapor que abandonava o próprio corpo se confundia com a nuvem de água evaporada. Parecia um sonho sem contornos, e Kurt precisava continuar se lembrando que não era, que tudo aquilo era real.
Deixando pegadas molhadas pelo caminho, ele deu passos muito lentos até o balcão de mármore da pia. O espelho do banheiro era algo impossível de ignorar. Cobria quase do teto ao chão, para proporcionar uma vista de corpo inteiro. Mesmo que estivesse evitando o próprio reflexo há dois dias, Kurt lutou contra seus instintos e parou de frente à pia. O espelho estava completamente embaçado. Tudo o que podia ver era uma silhueta incerta que poderia ser de qualquer um. Ou de ninguém.
No canto, o chuveiro começou a pingar, contando os segundos. A não ser por isso, tudo estava muito quieto. Mas Kurt vivia uma guerra dentro da própria cabeça. Metade de seu cérebro já estava programado para acionar o alarme diante de qualquer reflexo. Ele deveria desviar, ignorar a imagem do espelho, evitar a todo custo. Porque era Tony Young que aparecia nele, em todas as vezes. Eram os mesmos olhos, o mesmo cabelo, os mesmos traços. Essa mesma metade do cérebro vivia repetindo que Kurt não era melhor que o pai em nada.
Eu fiz quem você é. Ele ainda podia escutar as últimas palavras zangadas de Tony Young, gritadas dentro de sua cabeça. Tudo o que você sabe: trabalhar, consertar, dirigir. Você me deve tudo. E é assim que você me paga.
Kurt encarou os dedos imobilizados da mão esquerda, ainda se regenerando a partir dos ossos. Carter havia dito o mesmo sobre P.J.: Ingrato. Mesmo depois de P.J. sustentar você por tanto tempo. De tantas formas que podia pagá-lo, mas escolheu logo essa.
Apoiado com a mão saudável no espelho, ele escorregou a palma pela superfície, limpando uma faixa de umidade do vidro. No pedaço desembaçado, seu rosto surgiu nítido, uma pessoa o espiando por um buraco. Era a primeira vez que Kurt não se assustava, mas aquilo custou um esforço consciente. Aquele era ele mesmo, não seu pai.