Gabriel acordou de sonhos inquietos, e percebeu que chovia. As paredes de madeira do casebre rangiam sob o vento forte de agosto, e pequenos fios de água escorriam pela parede como invasores rastejantes fugindo da chuva. Não ouviu som de passos na casa, de modo que devia estar sozinho, o que era muito bom. Não gostava de conversar muito no dia do apontamento.
Lavou o rosto com a água parada de um balde, engoliu em seco pedaços de pão e vestiu-se com a túnica branca que a ocasião pedia. Desejava que seu pai estivesse ali. Contava mentalmente o nome de todos os amigos que fariam dezoito anos naquele ano, imaginando quem encontraria na cerimônia, mas os pensamentos logo foram varridos pela imagem da fila se formando. Conseguia ver apenas as costas de vários homens e mulheres enfileirados, todos vestidos de branco e com olhar distante. Posicionou-se no fim da fila e aguardou, como os outros, olhando para frente e em silêncio.
Ao seu redor, a vida parecia ignorar o que acontecia. Mercantes organizavam suas barracas, clientes andavam de lá pra cá com cestas nas mãos com todo tipo de produto recém trazidos do vale. Via queijo, leite, pequenos pedaços de carne, frutas, verduras, tudo que a estação oferecia em abundância. As pessoas pareciam felizes em voltar a ter o que comprar, sem se importar muito com os preços obviamente acima do convencional.
Observava uma senhora encher uma cesta com ovos de pata quando alguém tocou na sua nuca.
- Ansioso? – Perguntou uma garota baixinha, magra, inteiramente vestida de branco.
- Não. – Tentou mentir, sem sucesso. Suas mãos estavam geladas e seu rosto sério demais.
- Bom, eu também não. – Se percebeu a mentira, a garota ignorou. Realmente tinha ar confiante, com seus braços cruzados e olhar divertido. – Só espero conseguir um lugar bem longe daqui... – resmungou após um suspiro.
- Eu não sei o que é pior, ficar aqui neste fim de mundo ou ser enviado para alguma fronteira – reclamou Gabriel – acho que vou pedir pra ser dispensado.
A garota parecia ter visto um fantasma, ou escutado sobre o fim do envio dos morangos em sua ração semanal, de forma que logo soltou os braços em gestos rápidos de indignação
- O que? – esforçou-se para falar o mais alto possível sem incomodar os outros, acabando em um grito sussurrado – você por acaso está maluco? E vai fazer o que? Vender sucata? Ordenhar vacas pelo resto da vida? Pelo amor de deus, garoto.
- Seus pais ordenham vacas, Mariane – respondeu outro garoto, inteiramente vestido de vermelho e com tinta espalhada pelo rosto em duas listras pretas na bochecha.
Mariane ficou vermelha, olhou para o chão e voltou a cruzar os braços. Seus pais de fato ordenhavam vaca, mas faziam muito mais do que isso como já estava cansada de falar. Eles também produziam frutas, legumes, verduras, carne, mas ninguém respeitava. Todos riam dela por usar botas de borracha em dia de chuva, levar pães e ovos para o lanche da academia formadora e conhecer uma diversidade gigantesca de nomes de animais que podia recitar sem parar o dia inteiro, contando sobre as penas impermeáveis do gralho azul ou os olhos esbugalhados do sapo-de-ralo. Tinha um apreço especial por espécies pequenas e nojentas, que a maioria das pessoas se quer sabe da existência. Certa vez ouviu de um professor a história de um velho senhor de terras que morreu envenenado pela picada de um mosquito. "Sua pele derreteu até que todos os órgãos vazaram ao chão como se alguém derrubasse um balde de entranha de galinha no chiqueiro".
Como podia um ser tão pequeno causar tanto estrago? Ela não sabia, mas divertia-se ao imaginar o velho derretendo e vazando como uma bexiga de água estourada na cabeça de um amigo. Você até consegue juntar os pedaços do balão, mas a água já era.
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Sangue Santo [PROVISÓRIO]
Fantastik[PROVISÓRIA] Um reino ameaçado por um gás mortal que ronda as muralhas, e que só alguns entre aqueles que vivem lá conseguem suportar a morte gélida que espera quem respirar do ar maldito. A Santidade, uma organização religiosa, controla tudo e tod...