𝕆 céu escuro e sem nuvens de Sohalia indicou uma boa noite para sair. E é isso o que farei.
Após tanto procurar, cheguei a conclusão de que cristal não está nesta casa, apenas perdi meu tempo. Franzo o cenho. O kohan não me humilhará mais.
Meu estômago dói. Não vou definhar aqui dentro. Se foi o assassino quem preparou a refeição, gostaria de saber dizer se estava envenenada. Joguei fora para não ser tentado de novo. Comer algo decente será a primeira coisa que farei quando sair daqui.
Seguro firme a jarra vazia em minha mão, na outra, um pedaço de corda arrebentado e um cabo quebrado de um talher de madeira. O reflexo desconhecido que encaro na janela está bagunçado como o cômodo caótico. As olheiras se destacam como o cabelo negro despenteado, ainda preso, que chega até os ombros da roupa que um dia foi branca e azul-claro.
Com raiva ou não do que agora pareço, uso toda a força que tenho no momento para erguer e jogar a jarra contra o vidro, que se estilhaça com um estrondo. Dou um passo para trás instintivamente.
Pego um dos cacos de vidro caídos e, com a corda, amarro ao pedaço de madeira. Uma arma provisória. Passo-a entre uma mão e outra, conferindo se está bem preso.
Aproximo-me da janela quebrada, cacos tilintando entre si no chão, apenas complementando a bagunça do cômodo. Alguns ainda pendem do que sobrou nos cantos cortantes da janela arqueada.
A visão escura e direta do lado de fora, a brisa corre entre a grama e as folhas das árvores de cedro. O chão está metros abaixo, encaro, inseguro sobre pular. Com hesitação, o faço mesmo assim.
Quase consigo cair de pé, cambeteando no último segundo, apoio o peso do corpo em um cotovelo quando caio. Levanto e bato as mãos no que sobrou de tecido minimamente limpo da roupa.
Seja lá onde o kohan estiver, será atraído pelo estrondo do estilhaço e virá conferir. Como que confirmando meu plano, uma silhueta surge da escuridão da floresta, dentre as árvores. A figura ainda encapuzada.
Quando o avisto, dou uma volta em torno da casa, tentando despistá-lo. Apresso-me em direção ao que penso ser a entrada: três curtos degraus, um arco de pedra com uma porta de madeira bloqueada por tábuas. Então é assim que ele a trancou.
Retiro as pesadas tábuas de madeira da frente da porta, esforçando para não fazer barulho. Já do lado de dentro, vou ao quarto com o vidro estilhaçado, ficando entre uma estante caída e a parede, agachado. Seguro o peito, tentando desacelerar os batimentos.
Um pé após o outro aparecem diante da porta e entram. Agarro e puxo uma das botas sujas tão rápido quanto ele conseguiu olhar para mim antes de tombar no chão. Ele dá um gemido de dor quando a cabeça se choca contra o piso.
Com uma das mãos, seguro imediatamente os pulsos enluvados contra o chão quando percebo um movimento. Com a outra, seguro a arma improvisada contra seu pescoço, fazendo um esforçado autocontrole para não prensar sua pele mais forte do que isso.
- Onde ele está? - Exijo com os dentes cerrados. Meu tom de voz já não é mais o mesmo. Odeio como ele conseguiu me tirar do sério.
Ele pisca, perplexo, analisa a situação. Vira os olhos um tanto fundos e escuros para mim, o início de uma risada surge nos lábios.
- Acha que estou brincando? - Aperto a arma provisória contra sua garganta até quase começar a sangrar, a pele avermelhada.
Gostaria de matá-lo aqui, agora mesmo, mas preciso do cristal de volta. Preciso recuperar o resquício de dignidade que ainda me resta.
Ele balança a cabeça em negação e dá um chute forte no armário atrás, do qual não me viro para olhar por pensar ser claramente uma distração.
Percebo que o derrubou quando o móvel acerta minhas costas, me obrigado a segurá-lo, sem pensar, com as mãos. O assassino aproveita a oportunidade para se levantar e pegar um objeto de bronze, uma adaga, do cinto marrom-escuro.
Retira de minha mão, o caco inútil de vidro que chamei de arma, que se lasca ao cair. Ele segura o armário com uma das pernas, fazendo o peso sumir de minhas costas, enquanto aponta a lâmina para mim.
- Boa tentativa, mas achou mesmo que ia conseguir me matar com isto? - Ele balança os restos quebrados, mostrando os dentes na risada que sabe que me tira do sério.
Cravo as unhas no chão, olhando ao redor desesperado. Um dos cacos está um pouco longe, uso a ponta do pé para alcançá-lo, rapidamente pegando - e cortando minha mão no processo - e jogando-o contra o kohan, que desvia com as sobrancelhas arqueadas, deixando uma brecha.
Uso a oportunidade de distração para segurar seu punho que agarra os restos de vidro e madeira juntados com corda, e miro em seu pescoço novamente. O assassino resiste, empurrando a mão em minha direção. Sua outra mão, possuindo a adaga de bronze, seguro-a contra a parede.
Ele, em algum tipo de impulso, joga a adaga do outro lado do quarto, nem sequer mirando em mim. Outra distração, talvez.
Forço, agora com ambas as mãos, o vidro em sua garganta, que chega a fazer um breve corte no assassino. Mesmo fazendo uma careta de dor, ele consegue rir ainda que com dificuldade.
Avisto, pelo canto do olho, a porta afiada de bronze voltando em minha direção. Largo Kanobie e me abaixo. O kohan desvia e a adaga se prende à parede, a ponta toda enfiada na madeira. Mais um objeto mágico. Preciso descobrir onde ele encontrou isso.
Ele arranca a arma da parede. Desta vez, a lâmina está em meu pescoço. Os batimentos voltam a ficar mais rápidos, tanto quando cerro os dentes e aperto os punhos. Desgraçado. É só o que consigo pensar no momento.
- Acho que você esqueceu de perguntar o porquê eu preciso daquele cara antes de me julgar. - Comentou, envolvendo o pescoço com a mão, a voz finória como sempre.
- Não preciso perguntar motivos de um assassino sicário. - Em seu rosto, eu poderia cuspir agora mesmo.
O kohan se afasta, retirando a lâmina do meu pescoço. A expressão como se nada tivesse acontecido.
- Estou vendo que esse lugar também está te estressado, não é?
Ele ri com pena, guardando a adaga e esticando a mão enluvada para mim. - Tudo bem, vou te levar até sua pedrinha mágica.Fito sua postura por segundos, um pouco surpreendido. Me levanto sem sua ajuda, obrigando-me a ouvir o que ele tem a dizer.
- Acho que já percebeu que não está aqui.
Eu percebi como você me enganou de novo. É o que eu gostaria de dizer. Levanto a sobrancelha, incerto de que ele realmente me levaria até ela. Estou me deixando confiar em um assassino, apenas por agora. Não sei o que quer ou o que pretende, mas vou matá-lo de qualquer maneira.
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A Queda de Ahasalia
Fantasía𝕰m Ahasallia, a magia entrelaça destinos e destrói certezas. Criaturas esquecidas pelas lendas vagam por suas florestas e montanhas, e os ventos sussurram segredos antigos. Um jovem aprendiz caminha entre o desconhecido e o inevitável, guiado por u...