Capítulo IV

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Dois meses se passaram, mas parecia que eu tinha vivido dois séculos naquele lugar. O marasmo era palpável, as missas, o puro suco da monotonia.

O povo não tinha muita coisa para fazer. Eles se revezavam entre igreja, pasto e um bar, onde bebiam e falavam da vida alheia. E nesses rumores a boca pequena, eu virei alvo.

Uma velha beata — parecia que todos ali tinham mais de cinquenta anos —, me chamou, quando eu estava a dois pés da sacristia e alertou que riam da minha performance no altar, porque eu tinha postura de um menino que entregava jornais e não um clérigo respeitável. Agradeci o aviso e não me importei com o falatório sobre minha capacidade técnica em dar sermões para meia plateia surda e outra parte sem cognição para diferenciar uma lesma de um hipopótamo.

Mas, naquela plateia de idiotas necessários, havia Cecília. Para ela, meus discursos acalorados sobre amor-próprio eram direcionados.

...

Cecília se dirigiu ao confessionário e me pus três passos à frente, correndo para chegar antes no local.

Ela havia confessado na semana anterior. Por indicação de padre Joaquim, ela deveria se ajoelhar todo domingo, pedindo a súplica de Deus sobre seus pecados. Metade do que Cecília discorria não era relativo a pecados. Muito longe disso. Suas queixas eram verdadeiras, sua dor também. Conforme as coisas foram ficando claras, entendi que Cecília vivia um pesadelo, desde que fora entregue nas mãos do senhor Preston — que Deus não o tenha, pois certamente o Diabo o carrega pelas pernas.

Cecília confidenciou diversos abusos sofridos, tanto físicos quanto mentais. Eu estava diante de uma mulher sem esperanças, mesmo que estivesse longe da soleira dos trinta anos. Quanto mais eu ouvia sobre os demônios que pairavam sobre a cabeça de Cecília, mais eu queria espantá-los, a pontapés.

Mais uma vez diante do confessionário, Cecília começou a falar.

A princípio, pediu perdão para Deus por ter "pensamentos que não condizem com a postura de uma mulher temente". Logo, descobri que os tais pensamentos nasceram de uma pequena revolta das ovelhas que invadiram a propriedade vizinha, devido a um afrouxamento da cerca.

— Me sinto incapaz de segurar alguns instintos, padre Charlie.

— Você só xingou o vizinho, Cecília.

— Isso não é uma boa conduta, padre.

— Duvido que ao bater o dedo mindinho em uma madeira qualquer, Jesus se manteve pleno de graça e não esboçou um singelo resmungo. Todos nós resmungamos. Por vezes, esses resmungos são a pura forma da verdade. Xingar não é pecado, acredite. Manter as palavras para si e depois praguejar, isso sim, é pecado. Falar o que sentimos é uma dádiva, Cecília.

— O senhor sempre fala o que sente?

— Não! Pelo contrário. Raramente expresso o que sinto. Por isso, digo, sou tão pecador quanto você, que xingou o vizinho para defender as pobres ovelhas.

— Me sinto menos cruel, ouvindo suas palavras. Devo orar quantas ave-marias?

— Nenhuma, Cecília. Nenhuma! Deus perdoa cada ato honesto.

Cecília suspirou. Ela parecia querer discorrer algo além do evento ovelhístico.

— Algo a incomoda?

— Sim! Mas não sei se tenho coragem para mencionar.

— Sou os ouvidos de Deus neste lugar, Cecília. Depois que me levanto, nada mais é lembrado, porque tudo fica com Deus, não comigo.

— Padre.

— Sim?

— Recebi uma visita, não tão ilustre assim, em minha casa.

Holy Water - Nicholas Alexander Chavez fanfic - PT-BROnde histórias criam vida. Descubra agora