Quando eu era criança, acreditava em todas as histórias que mamãe contava para mim. Ela tinha uma habilidade mágica de me fazer ver fadas, heróis e mundos onde nada de ruim podia acontecer. Em sua voz, eu encontrava a segurança de que o mundo era um lugar seguro, onde tudo sempre seria tranquilo. Com ela, eu me sentia protegida. Não tinha medo de nada, nem de ninguém. Mamãe era minha fortaleza, e eu acreditava que nossa vida era uma linha reta, sem segredos ou sombras.
Ela dizia que tínhamos vindo para o Brasil antes de eu e minha irmã nascermos, e eu imaginava nossa mudança como uma aventura. Mamãe, para mim, tinha apenas escolhido nos trazer para cá para construir uma nova vida, e o homem mau de quem ela falava era alguém de um passado distante, que nada tinha a ver conosco. Era apenas alguém que ficou para trás, como uma lembrança esquecida. Eu nunca pensei em fazer perguntas sobre ele. Mas o tempo passou, e eu comecei a perceber que as histórias da mamãe tinham buracos - buracos que ela tentava preencher com seu silêncio.
Até o dia em que, de alguma forma, minha memória me devolveu todas as lembranças que eu havia enterrado. O homem mau não era apenas uma sombra distante, um personagem de uma história que ela contou. Ele era o nosso pai. Ele era o homem de quem mamãe fugiu, e eu e Samira éramos tão pequenas que nem lembrávamos de como era viver ao lado dele. Ele era aquele que quase tirou a vida dela - e a nossa.
Ao recordar disso, senti que uma parte de mim se quebrava. As imagens vinham como flashes dolorosos, como se um véu tivesse sido rasgado diante dos meus olhos. Vi minha mãe machucada, marcas que ela nunca quis explicar, o medo em seus olhos. As lembranças eram vívidas, um soco direto no peito, e meu coração parecia se despedaçar a cada cena. Tentei confrontá-la, perguntar o motivo de ela ter escondido a verdade. E ela apenas me olhou e disse que o passado dela não importava mais, que estávamos seguras e que eu deveria esquecer.
E eu tentei acreditar nela. Queria tanto ter aquela esperança de uma vida sem medo. Mas era como tentar se libertar de correntes invisíveis.
Na adolescência, algo em mim já havia mudado. Eu não era mais uma criança que acreditava em fadas. Eu era uma garota frágil, marcada por uma ansiedade esmagadora que crescia dia a dia, como se o medo do passado estivesse sempre à espreita. Desenvolvi um transtorno de ansiedade e, com ele, ataques de pânico que me consumiam e tiravam minha paz. Havia um pavor em mim que eu não conseguia controlar, uma sensação de constante ameaça. Era como se, a qualquer momento, ele pudesse reaparecer.
Eu me escondia atrás de uma máscara de indiferença, fingindo ser forte, mas por dentro, tudo era um caos. Meu coração batia forte a cada vez que alguém se aproximava muito de mim. Nas sessões de terapia que eu conseguia fazer no hospital público, os psicólogos tentavam me ajudar, mas eu sentia que ninguém poderia entender completamente. Mesmo que eu começasse a construir uma confiança, a menor coisa podia me fazer perder o chão.
Lembro-me bem de um dos piores episódios de pânico que tive na escola. Saía da aula de história, perdida em pensamentos, e alguém esbarrou em mim no corredor. O toque me fez congelar, e, de repente, foi como se o ar ao meu redor desaparecesse. Meu coração disparou, e minha respiração ficou rápida e curta. O som das vozes e o movimento ao meu redor pareciam aumentar. Olhei ao redor, procurando uma saída, mas o mundo parecia encolher e ficar opressor. Meus músculos ficaram rígidos, e eu mal conseguia mexer as mãos. Era como se o chão estivesse desaparecendo sob meus pés.
Corri até o banheiro, com as pernas tremendo, e fechei a porta atrás de mim. Apoiei-me contra a parede e tentei respirar, mas era como se o ar estivesse pesado demais para ser inspirado. Senti meu corpo tremer, e minha mente corria para lugares escuros. Era como se eu estivesse sendo engolida. E a pior parte? Todos os outros continuavam vivendo suas vidas, sem entender o que estava acontecendo comigo. Vi os olhares curiosos, os cochichos, e sabia que muitos achavam que eu era só "a garota fraca".
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O que há entre nós
RomanceSinopse: Luce é uma jovem decidida a deixar o passado para trás. Em busca de paz e de um novo começo, ela aceita um emprego em um restaurante numa pequena cidade do interior, onde acredita que poderá finalmente encontrar um pouco de tranquilidade. M...