Calíope passou os cinco dias de caminhada intercalando perguntas curiosas com momentos de convivência familiar. Raramente conseguia esconder o quanto ficava surpresa ao descobrir que sua mãe tivera outra vida antes de ela nascer. Aproveitava qualquer oportunidade para perguntar. Depois de acertar um coelho com o estilingue e garantir o jantar, por exemplo, aproximava-se da mãe com o animal morto e soltava questões como: "Por que você tinha outro nome? Como era sua família? O que tudo isso tem a ver com os nossos poderes?"
Depois de cinco dias, a mãe montou o acampamento na beira de uma gruta e declarou que tinham chegado ao destino final. Ela entrou e apresentou a caverna para a filha e ambas percorreram longos caminhos até encontrarem o espaço em que a gruta se abria em um grande lago de água azul, repleto de plantas que sobreviviam unicamente por conta da luz que entrava por um buraco no teto da caverna. A atmosfera do lugar era, certamente, enigmática. A cor da água lembrava a água límpida do degelo, e as plantas que ali cresciam, por vezes, assumiam formas tão grotescas que pareciam extraplanetárias. As pedras que pisavam eram escuras, úmidas e geladas, e alguns cristais se viam presos nas paredes.. Estalactites e estalagmites se amontoavam em alguns dos cantos. E tudo parecia meio misterioso e mágico.
Mas o mais bizarro de tudo era o lago. Seu chão estava coberto de pedras brilhantes e uma força estranha parecia atrair a menina para lá. A película da superfície era abalada somente pela precipitação de gotículas vindo das rochas do teto, mas tudo era extremamente calmo. E só de estar perto, Lilly se sentia forte como nunca, e suas dores pareceram sumir. Pela súbita força sobrenatural do lago, as duas não conseguiram não trocar olhares cúmplices.
Mergulharam na água antes da hora do almoço, depois do café, e lá ficaram até o entardecer, brincando e curtindo a vida ali na caverna. Às vezes, Calíope tinha essa impressão de que a água tinha ficado mais densa, mas depois se esquecia. Enquanto isso, Alice, que no primeiro mergulho, quase como se revivesse a infância, era um poço de alegria, agora ficava progressivamente mais triste.
- Meus amigos e eu costumávamos nos banhar aqui.
Calíope ergueu uma das sobrancelhas, curiosa para saber um pouco mais sobre o passado da mãe.
- Filha, você sabe que eu te amo, né? - disse, e Lilly fez que sim com a cabeça, fazendo a mãe sorrir.
- Então, por favor, vamos sair daqui e comer uma coisa, se não eu vou cair durinha de fome.
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Ao entardecer, Alice pediu que Lilly se aprontasse, pois iriam entrar um pouco nos confins da caverna, para ver as maravilhas que aquela gruta escondia. Por algum motivo, obrigou que a menina levasse a mochila de couro, e Calíope imaginou que fosse um cuidado para caso se perdessem. A menina já tinha visto algumas histórias de aventureiros que se perdiam em cavernas assim e raramente essas tinham finais felizes.
Conforme andavam pelos corredores escuros, Lilly teve essa sensação estranha. Não sabia exatamente o que, mas era como se aproximasse de um evento perigoso e iminente. Tentou convencer a mãe de voltar e, por um instante, a mãe pareceu cogitar, com um olhar muito diferente de todos aqueles que já tinha visto antes em Alice. Parecia que a mulher tinha algo preso na garganta. Talvez, pensou a garota, talvez aquele lugar a lembrasse de coisas ruins.
Continuaram até uma bifurcação. Ali, a mãe parou por um tempo, decidindo se dava ou não o primeiro passo.
- Mãe, tem certeza que você tá bem? - perguntou Calíope, e Alice fez que sim.
- Estou sim, querida. Tenho que te mostrar uma coisa. Pode me seguir?
E Lilly fez que sim. Receosa, seguiu a mãe até o final de um corredor, em que a caverna se abria para o céu. Logo viu que seus pés se encontravam a uns dez metros acima do lago em que antes mergulhavam, e que tudo estava muito diferente de quando partiram. No buraco para o céu, estava a lua cheia, que parecia mais próxima que o normal, e as estrelas brilhavam estranhas. As paredes reluziam como um cristal negro e vagalumes voavam por toda parte. E o lago, que antes era azul brilhante, agora parecia feito de um líquido azul translúcido cheio de glitter e arco-íris.
- Mãe, essa é provavelmente a coisa mais linda que vi na minha vida. - ela disse e Alice sorriu. A mulher, então, se sentou na beirada, fazendo com que a garota fizesse o mesmo.
- A primeira vez que eu vi esse lago assim, tive certeza que jamais viria algo tão belo. Não sei se é a energia do lugar. Mas o lago Sije, se fosse conhecido por todos, seria facilmente considerado a primeira maravilha do universo.
E as duas contemplaram toda aquela beleza, em silêncio.
- Você confia em mim Lilly? - perguntou a mãe, de repente, enquanto fitava as águas. E Lilly sentiu que devia responder sério.
- Sim.
Sorrindo. A mulher beijou a testa de Calíope, deu um abraço apertado e cheirou a filha. Pareceu que o abraço nunca ia se desfazer, o que normalmente incomodaria menina, mas dessa vez sentiu um desespero de não deixar a mãe. Depois de um longo momento, a mulher a soltou e a entregou um sorriso sapeca, só para dizer:
- Te amo.
Lilly riu, aliviada.
- Eu também te am... - antes que terminasse, sentiu a mão de Alice a puxar junto em direção ao lago, algo que, por um momento, fez seu coração parar de medo. No ar, a mais velha a agarrou em um abraço quente e sem sentido. Foi uma queda desengonçada para a dupla, e naqueles momentos pensou que ia morrer e que sua querida mãe tinha pirado de vez. Esperou a dor imensa que seria cair de barriga naquelas águas, mas, quando afundou, foi como se mergulhasse em uma piscina de bolinhas, exceto que, invés de bolinhas, estava flutuando em uma água transparente e espessa, que brilhava e separava as cores da lua.
Como não sentia dor, tudo parecia muito um sonho. Ela olhou em volta, tentando sair, mas não conseguiu identificar a superfície até ver a imagem de sua mãe na beira da água, chorando, em prantos. Os cabelos da mulher estavam molhados, como se tivesse acabado de cair. A garota não entendeu como Alice tinha saído da água tão rápido, nem o porquê estava tão triste. Mas, quando tentou emergir para consolá-la, a superfície se tornou uma espécie de vidro, que a impediu de voltar. No entanto, como Calíope não sentia vontade de respirar, tampouco tinha lógica em tudo aquilo que ocorria, a menina pressupôs que estivesse sonhando e seguiu nadando, com apenas um leve pesar no coração para a acompanhar.
Sem que percebesse, seu nado se transformou em passos lentos, e a superfície irregular do lago se transformou em paredes de substância similar. Ela andou pelo corredor e, conforme andava, via mais e mais superfícies, com diferentes pessoas e criaturas a espreitando. Em algumas, a caverna se encontrava vazia. Em algumas, via formas de vida nunca antes observadas. Em uma, viu a si própria e a mãe se banhando e rindo, e se lembrou de estar na mesma posição ainda naquele dia.
Em qualquer daquelas imagens, se tentasse, Lilly conseguiria emergir. Mas uma força estranha a fazia querer seguir em frente, e, um por um, esses quadros foram passando, e os segundos viraram minutos e horas. Até que, por fim, todas as imagens sumiram. No final do corredor, uma grande superfície se erguia, com uma gravidade impressionante. De lá, escutava vozes que pareciam estar em outra língua, mas as quais a menina sentia que poderia entender se se aproximasse.
Parecia certo. E, por isso, Lilly foi diminuindo a distância, até que não precisasse fazer esforço algum para que seu corpo fosse tragado e até que nem mesmo seu maior nado fosse suficiente para a livrar da corrente que a puxava. A última coisa que viu ali dentro foi um círculo negro se fechando em volta da superfície. Este o qual, por pouco e por sorte, não a guardou naquele limbo pela eternidade.
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Calíope Braga
FantasíaCᥲᥣί᥆ρᥱ Brᥲgᥲ ℯ𝓂 𝓊𝓂𝒶 𝒶𝓋ℯ𝓃𝓉𝓊𝓇𝒶 𝒹ℯ ℴ𝓊𝓉𝓇ℴ 𝓂𝓊𝓃𝒹ℴ (Por enquanto, um capítulo a cada dois dias) (Se acharem que a história tá boa, não esqueçam de votar pra dar um apoio ;-;) "O destino conduz o que consente e arrasta o que resiste."...