❶. 𝒜 𝒻𝒶𝓂𝒾́𝓁𝒾𝒶 𝒷𝓇𝒶ℊ𝒶

36 5 0
                                    

Todas as histórias que conto são reais. Algumas, no entanto, desconheço uma alma viva que acreditaria. Assim, toda vez que me arrisco em uma dessas, quase como Cassandra, estou fadada a ser vista como mentirosa enquanto conto a mais pura verdade. A verdade que poderia ter sido sua, a verdade que poderia ter ocorrido com você.

Mas, se fosse você o protagonista, sejamos francos, seria uma narrativa muito mais entediante e, provavelmente, acabaria de um jeito chato e menos desastroso. Para a felicidade geral, o universo tem bom gosto e decidiu nomear como heroína da nossa história a excêntrica Calíope Braga, que, embora à primeira vista pudesse parecer uma garota como qualquer outra na Terra, estava envolvida em um contexto tão estranho que ela mesma era incapaz de compreender. Talvez fosse porque ninguém nunca havia se preocupado em fazê-la entender. No fim, ela não era tão diferente de ninguém.

No entanto, existem alguns pequenos detalhes que a tornavam essencialmente distinta de qualquer humano típico - se é que podemos chamá-la assim. O primeiro deles era sua mãe, la bruja, Alice Braga. Conhecida em toda a cidade como uma mulher que espalhava maldições por onde passava, alguns diziam que ela surgiu no mundo a partir do nada, como um demônio que escapou do inferno. Francamente, uma bobagem - embora a verdade não fosse muito distante disso.

O pai de Calíope, Pedro, ao contrário, era um homem comum. Ninguém tinha nada contra ele, e ele não tinha nada contra ninguém. Era um homem branco muito tradicional, mas também muito bom. Seguia as regras à risca, tratava todos bem, e a maioria das pessoas o considerava entediante, exatamente como deveria ser. Era tão normal que chegava a ser estranho. Talvez fosse por isso que todos aceitaram bem o fato de ele ter se envolvido com uma mulher tão atípica. Afinal, todo mundo tem um defeito, e o de Pedro talvez fosse seu mau gosto para mulheres.

Pedro não era excepcionalmente bonito, mas ninguém o chamaria de feio. Tinha um nariz grande, cabelo castanho e era um magrelo básico. Já Alice tinha uma beleza estranha, quase mística. Sua pele era de um tom marrom bronzeado, que às vezes parecia brilhar. Seus olhos tinham um olhar sedutor, quase sereiano, e seu cabelo cacheado, de um preto quase azul, parecia voar. O resultado foi Calíope, uma garota que herdou as piores qualidades de ambos.

Quando se casaram, decidiram se afastar da cidade e foram morar em uma casa no campo, próxima a uma mata alta. Lá, trabalharam com a terra. Foi nesse cenário que Calíope nasceu e cresceu, se aventurando na natureza como um pequeno animal selvagem e depois embarcando no ônibus da escola - que ela considerava um ambiente ainda mais selvagem.

As crianças do colégio riam de seu comportamento, como se ela fosse um bonobo coçando a bunda no zoológico. Pessoalmente, aquilo a irritava. Ela sabia que riam dela, e isso era tão frustrante que, às vezes, a fazia chorar. No final, decidiu aceitar e seguir em frente, convencida de que talvez realmente fosse digna de riso.

Outro detalhe que a fazia ser vista como estranha era sua reputação de mentirosa. Ou era isso que as crianças da escola pensavam. Calíope dizia ser capaz de coisas absurdas, como mover objetos com a mente. A princípio, os colegas ficavam empolgados e pediam que ela demonstrasse, mas, ao se recusar, dizendo que ainda não sabia controlar o poder, acabava se tornando motivo de chacota. Na verdade, ela nunca tinha feito nada parecido, mas achava que um dia seria capaz, então não considerava isso uma grande mentira.

Apesar de tudo, Calíope era feliz, pois tinha pais que a amavam e se respeitavam. Isso fazia da família uma das mais bonitas da cidade.

Bem... era a família mais bonita da cidade, do verbo "não é mais". O que destruiu esse título recebido foi a morte atípica de Pedro, que reacendeu, com ainda mais força, a rejeição da cidade por Alice e, agora, por Calíope. Ele foi ficando progressivamente mais doente, sem que ninguém soubesse a causa. Nenhum médico conseguiu diagnosticar o problema. Era como assistir a um homem desaparecer aos poucos.

Esse processo foi vivenciado de maneiras diferentes por cada membro da família. Para Pedro, foi como pegar fogo lentamente e morrer em vida. Para Calíope, foi o desespero de ver a alma do pai sendo ceifada pela morte. Para Alice, foi como perder, pela segunda vez, o amor de sua vida, após descobrir, tarde demais, o que poderia tê-lo salvado.

De certa forma, o dia em que Pedro respirou pela última vez foi também o dia em que Alice e Calíope pararam de respirar. Assim, todo o mundo daquelas pobres almas desmoronou.




Comentem 🩷

Calíope BragaOnde histórias criam vida. Descubra agora