CAPÍTULO 10

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"Merlin, estou enfrentando meu primeiro conflito diplomático desde a coroação. Não imaginava que o presente de Sir Leodegan, que tanta alegria me trouxe, pudesse se transformar numa tal dor de cabeça. Claro que eu posso determinar onde cada homem deve tomar assento, mas não seria uma decisão ditada pela justiça, e sim imposta pela minha autoridade. Os cavaleiros a aceitariam a contragosto, por medo e obediência, não por concordância."

Era a manhã seguinte ao banquete de boas vindas à comitiva. Merlin e Arthur conversavam no quarto do rei, sentados a uma pequena mesa sob a janela, no mesmo lugar onde Merlin ouvira de Arthur que o casamento com Guinevere já fora acertado e que seus homens já haviam partido para buscá-la. Merlin ainda sentia-se abalado pela forte impressão que o sonho da noite anterior lhe causara. Tinha que se forçar a encarar Arthur enquanto se falavam, tendo-o visto morrer poucas horas antes. Olhava-o como quem olha um condenado, um sentenciado à forca, alguém com dias contados. O que era uma bobagem, ele sabia. Os dias de todos eram contados, a hora de cada um iria chegar. E a de Arthur, a julgar por seu sonho, demoraria. Seria motivo de contentamento, portanto. Forçou-se a se concentrar no problema que seu amigo lhe trazia. Tentou inclusive se alegrar com o fato de o rei considerar aquela situação um problema: não era isto que esperava de Arthur, que guiasse suas decisões pela justiça, não por demonstrações gratuitas de autoridade? Depois de alguns segundos de silêncio, Merlin deu seu veredito:

"Numa mesa sem cabeceira, nenhum lugar é mais importante que outro. Não haverá motivos para disputa. E, o mais importante, ninguém vai se sentir superior ao outro, ainda que intimamente, por se sentar neste ou naquele lugar." Enquanto falava, Merlin desenhava com a ponta do dedo indicador a forma de um círculo no tampo da mesa a que estavam sentados. Arthur sorriu.

"Uma mesa circular? Claro! Vossas soluções simples e certeiras fazem com que eu me sinta um bocado obtuso!"

"A experiência vos ensinará! Preciso ir agora, Majestade, mas ficai descansado: a mesa estará pronta antes das bodas!"

Ao abrir a porta para deixar o quarto do rei, deparou-se com Lancelot vindo em sua direção. Encolheu-se, numa repulsa incontrolável. Mas era impossível não ser visto, ou fingir que não o viu.

"Bom dia, Mestre Merlin! Vejo que Sua Majestade já acordou!"

"Bom dia, Sir Lancelot! Sim, acordou — a manhã já vai a meio, afinal!"

"Gostaria de falar com ele. Estará muito ocupado?"

"Não está fazendo nada que não possa interromper para recebê-lo."

"Será que está de bom humor? Toda a confusão de ontem, vós sabeis..."

"Ah, aquilo. Ele está preocupado, mas não de mau-humor. Irá animá-lo conversar com um bom amigo como vós." Será mesmo um amigo? Até quando? Merlin fixou o olhar no ombro esquerdo de Lancelot, para simular um contato visual que ele não conseguia manter.

"Sir Kay ficou furibundo com a expulsão."

"Lamento vos haver feito passar por isso, mas foi necessário."

"Sim, repeti-lhe isso enfaticamente. Mas sabeis como ele é. 'Sou irmão do rei, mereço uma tigela de caldo quentinho, blá-blá-blá.' Disse que não superará a desfeita assim tão logo."

"Bom, ele deve tentar. Se me permite, sir! Tenho um compromisso. Uma aula." E já ia lhe dando as costas, mas o cavaleiro parecia insciente do desconforto de Merlin e de sua intenção de pôr um ponto final à conversa.

"Claro! Minha prima contou-me que agora sois seu professor de magia!"

"Vossa prima?"

"Não é bem uma prima, mas é como se fosse. Eu a vi crescer, quase poderia dizer que fomos criados juntos na Pequena Bretanha — exceto que sou uns anos mais velho. Uma menina muito inteligente! Tenho certeza de que está sendo fácil ensiná-la."

Vale sem RetornoOnde histórias criam vida. Descubra agora