LIVRO 2 -- CAPÍTULO 20

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Sim, a velha senhora tinha uma importante ocupação de que cuidar lá para os lados do jardim, nos arredores por sob a janela de Lady Guinevere. Minutos antes, vira o jovem cavaleiro erguer-se de súbito e se afastar quando fora flagrado mirando o quarto da rainha através do vidro. Mas não devia ter ido muito longe. Não duvidava nadinha, inclusive, de que estivesse apenas dando um tempo antes de voltar ao mesmo lugar. Estaria apaixonado por ela? Ou apenas interessado em seduzi-la? Bem, que diferença faria, se a rainha, esta, sim, estava sinceramente apaixonada e pronta a cair na lábia dele? O nervosismo, o choro descontrolado da moça ao ser confrontada não deixavam dúvidas. E, por mais que a ama a houvesse advertido para que se afastasse dele e não alimentasse tal sentimento, não confiava em que ela saberia conduzir a situação com propriedade. Sir Lancelot tinha que ir-se embora dali antes que o pior acontecesse. Era só isso que importava.

Lady Guinevere era uma boa menina, generosa e gentil. Mas também era imatura, mimada, vaidosa. Difícil que fosse diferente, com todos afirmando-lhe, desde que ela nascera, o quanto era linda e preciosa, e satisfazendo-lhe quase todos os caprichos. Hoje Babá dava-se conta do quanto se equivocaram em sua educação. Muitos ensinamentos sobre regras de etiqueta, sobre como embelezar-se, como ser agradável e cordata, mas nenhuma contenção à sua vaidade, nenhum estímulo para que enfrentasse dificuldades sozinha e desenvolvesse resiliência e iniciativa.

Além disso, a moça nunca se apaixonara antes (isso, a velha senhora podia garantir, pois estivera com ela por todos os dias de sua vida até que ela fosse para Camelot), o que a tornava ainda mais susceptível e inexperiente para lidar com o que sentia. A ama acompanhara a expectativa da então princesa com os arranjos para o casamento, a ansiedade com que embarcara para a capital de Logres. A rejeição do rei deve ter-lhe machucado muito fundo, e temia que ela não resistisse à paixão nascente pelo tal cavaleiro que a acompanhava, mesmo ciente de seu erro, fosse para vingar-se do rei Arthur, fosse pela frivolidade de assegurar-se que ainda era atraente, apesar de rejeitada, fosse meramente por não conter seus impulsos.

Se a deixasse sozinha para desembaraçar-se da situação, sua menina acabaria por fazer alguma tolice. Depois que Lady Guinevere retornasse a Camelot, teria que contar apenas com seus próprios recursos, pois a ama não teria mais qualquer influência ou poder. Lá, ela e o jovem estariam inalcançáveis e desimpedidos para fazer a bobagem que lhes viesse à cabeça. Por isso, a velha estava ansiosa para afastar aquele petulante agora, enquanto a moça ainda estava em Carmélide, sob suas asas. Não poderia deixá-lo retornar a Camelot com ela.

Ia refletindo nisso tudo enquanto caminhava pelo jardim, esticando o pescoço e olhando para um e outro lado, buscando-o. Ah, ali estava ele, sentado na mureta do terraço como quem montasse a cavalo, esculpindo alguma coisa num pedaço de madeira com uma pequena faca. Por alguns segundos, como ele não a percebesse, deixou-se ficar ali, admirando-o trabalhar. Era compreensível a atração que exercia sobre Guinevere, pois era um belíssimo rapaz. Já vira outros tão atléticos e bem formados como ele, mas não tão elegantes. Enquanto o excesso de exercícios parecia deixar os outros cavaleiros grosseiros e endurecidos, não era o caso com este. Talvez porque fosse alto, alongado, não excessivamente musculoso. Seu rosto, abaixado em direção à escultura, era bonito, também. Os cabelos escuros e lisos, os olhos também escuros faziam suspeitar que não fosse da ilha. De fato, conforme soubera, ele vinha do continente. Abanou a cabeça, interrompendo a contemplação. Feio ou bonito, ele era o inimigo, o rapaz que queria desonrar sua menina, pô-la a perder. Tinha que ser dura e livrar-se logo dele.

"Sir Lancelot?"

Ele olhou para os lados, tentando localizar quem o chamava. Ao avistá-la, pôs-se de pé na mesma hora.

"Pois não?!"

"Sou a ama de Lady Guinevere. Cuidei-a desde pequenina!"

"Sim, sim, claro!" ele aquiesceu com um sorriso simpático. "Às suas ordens, senhora!" exclamou, com uma mesura. "Em que vos posso ser útil?"

Vale sem RetornoOnde histórias criam vida. Descubra agora