LIVRO 2 -- CAPÍTULO 4

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Ele a beijara, e ela não sentira raiva, repulsa nem ódio. Ela gostara, correspondera, e isso a confundia. Assim como a confundia não mais odiar Arthur. Odiá-lo era um hábito, uma segunda natureza. A meta da vingança a mantivera viva e estimulada durante todos aqueles anos. E agora, a que dedicar sua vida? Sentia-se vazia.

Ademais, Arthur continuava sendo seu irmão. E filho de Uther, o inimigo, o homem que lhe roubara pai e mãe. No entanto, agora estava claro para ela que todo o ódio que sentira de Arthur, Uther e Merlin era na verdade ódio a Gorlois e Igraine. No fundo, sempre soubera que Gorlois poderia ter preservado o núcleo familiar, a integridade da esposa e da filha, mas Morgana e Igraine valiam menos para ele que seus brios de homem, e ele preferira sacrificá-las a sacrificar seu orgulho. Porém, doía demais odiar o pai, lidar com a rejeição, admitir que não fora tão importante para ele. Mais fácil odiar Uther, culpar o Cavalão. Tempos após, a mãe preferira mandá-la embora a arriscar seu precioso casamento com o rei. Outra vez, Morgana era rejeitada por quem mais amava. E, de novo, foi menos sofrido odiar e culpar o padrasto e seu séquito a assumir-se uma enjeitada pela mãe. Seus pais eram os verdadeiros responsáveis por seus padecimentos: primeiro, a orfandade. Depois, a solidão em Avalon. Arthur não a rejeitava. Acolhera-a desde que soubera que tinha uma irmã. Fora ele que reabrira as portas do castelo que Igraine havia fechado às suas costas!

Em meio a essas reflexões, chegou-lhe uma bandeja de comida, e ela deu-se conta da fome que a consumia. Sopa, pão, queijo, frutas, carne assada. Não sobrou nada. Seu estômago, atrofiado pelas longas horas de jejum, doía ao se dilatar bruscamente, mas isso não reprimia sua voracidade furiosa. Por fim, o esgotamento das noites insones, da tristeza e do remorso pesaram em suas pálpebras, que se fecharam.

E Morgana sonhou. Sonhou que caminhava pelo pomar de macieiras de Avalon. Sozinha, como sempre fora seu fado. De repente, o pomar já era o jardim do castelo de Camelot, e havia companhia: Arthur, senhor do castelo, também caminhava ali, mas não a vira. Ela quis se esconder atrás de uma árvore. Não teve tempo: o movimento chamou a atenção dele, que veio em sua direção, com um sorriso largo, como era de seu feitio. Quando a alcançou, envolveu-a num abraço e, com a naturalidade só possível nos sonhos, eles se beijaram sem trocar qualquer palavra.

Morgana sentiu as pernas fracas, a nuca arrepiar-se. Ansiava por sentir os lábios de Arthur em outras partes de seu corpo. Quando ele pousou a mão em seu seio esquerdo, fazendo seu coração bater enlouquecido, ela acordou, frustrada. Tinha que saber o que acontecia a seguir, o que sentiria se ele a tocasse sob a roupa, envolvesse sua pele com as mãos. Talvez, se fechasse de novo os olhos, conseguisse voltar a dormir, e retomar o sonho de onde ele parou... Não! Estaria ficando louca?! Arthur era casado! Pior, era filho de sua mãe, Igraine! Amá-lo era uma infâmia, uma obscenidade.

Ouviu o barulho de pancadinhas e só então percebeu o que a acordara: alguém batia à sua porta. Era ele! Só podia ser. Na volta do funeral, ele a instara a alimentar-se e dormir, e prometera vir vê-la mais tarde. Ademais, além de Arthur, quem mais ali se importaria em procurá-la? Não atenderia. Ele pensaria que ela estava dormindo e iria embora. E ela ganharia tempo para pensar no que fazer.

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