Capítulo XIV

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Ainda havia fogo na lareira. A cabana de madeira ficara silenciosa. Rachel acordou, estava só em uma cama, não conseguia se mover. Há algum tempo atrás havia barulho lá fora. Agora, no entanto, apenas silêncio.
Tentou levantar-se, mas havia algo enrolando-a completamente. Começou à chorar. Ela podia chorar? Não era de seu feitio, mas neste momento era inevitável.
De repente a porta da cabana se abriu, ela mal podia enxergar, parecia que seus olhos não viam luz há algum tempo. Era uma mulher. Pegou-a em seus braços e começou a cantar uma canção. Já havia escutado, porém não na voz desta mulher, que mesmo familiar, naquele momento parecia uma estranha.
A mulher saiu da cabana com Rachel em seus braços, parecia aflita, entrou na mata, começou a correr por entre as árvores. Subiu um barranco com muita dificuldade, correu ofegante por mais um tempo, quando cansada, parou por uns instantes. Voltou a correr.
Parecia haver em si um sentimento de urgência, mesmo muito cansada, e carregando Rachel nos braços, ela correu pelas árvores altas, sempre subindo.
Quando enfim parou, Rachel sentiu uma brisa fria em seu rosto, a mulher estava quase deitada, como se estivesse se escondendo, seus braços seguravam a garota com força. Estava olhando para baixo, com muito temor. Rachel olhou para a mesma direção, pôde perceber que estavam em um mirante, lá em baixo , em um campo mais aberto, uma clareira circular, haviam várias pessoas, todos vestiam uma manta negra, rostos cobertos por capuz. Formavam um grande círculo e no seu centro, havia uma grande fogueira.

As figuras começaram a entoar uma canção com as vozes muito graves, Rachel sentiu um medo muito grande. Saindo da mata, uma outra figura, vestindo uma armadura prateada por cima de um macacão negro, também usando capuz que escondia uma máscara, espada na cintura. Trazia por uma corda amarrada nos pulsos uma mulher, cabelos negros, pele alva, olhos bastante azuis.
Rachel sentiu um calafrio subir por seu corpo, a mulher que a tinha nos braços começou a chorar desesperadamente, lutando para não fazer barulho.
A figura com a armadura amarrou a mulher num poste de madeira preso à fogueira, os outros encapuzados aumentaram o ritmo de seu canto, o coração de Rachel acelerou ao máximo.

- Ravena Hawkeye. Você é acusada de bruxaria, acusada de ocultar material de feitiçaria, acusada de amaldiçoar um Paladino da Ordem para sempre. Como se julga perante essas acusações? - era a figura de armadura, a quem a estas alturas, Rachel sabia trata-se de outro Paladino.
- Se zelar pelas tradições de minha família e amar um homem de quem eu gostei muito for um crime tão grave. Eu me julgo culpada. - disse com o belo rosto voltado para o Paladino, sua expressão não era de arrogância, mas de coragem pura e paixão.
- Como julgado pelo Conselho da Ordem, e admitida sua grande culpa. Eu o segundo Paladino, sob a sombra do primeiro e sendo a sombra dos treze depois de mim, a sentencio à morte.

Os sacerdotes pararam o canto. Tiraram tambores por debaixo de seus mantos. Começaram a tocar de forma crescente. Outros sacerdotes saíram da mata, cada um deles carregando tochas de chama azul, foram aproximando-se e passaram por espaços formados pelos sacerdotes que já estavam ali, fizeram um círculo em volta da pira onde estava Ravena.
- Antes de aplicar a sentença, tragam o Paladino caído. Aquele que desejou trocar a doutrina da Ordem por um dos seres que fomos jurados a eliminar. Tragam o primeiro.
De outra parte da mata, dois outros paladinos traziam um outro, sem máscara, com as mãos acorrentadas às costas. Rachel ouviu a mulher que a tinha nos braços proferir palavras malditas, a garota, não sabia quem era aquele, mas sentiu um grande peso no coração quando ele caminhou até a fogueira e olhou Ravena nos olhos.
- Queimem a bruxa! - ordenou o segundo Paladino.
Os sacerdotes obedeceram, posicionaram as tochas de chamas azuis nos pés da fogueira que logo começou a arder em chamas, Ravena ficou encarando o primeiro, olhos nos olhos, tinha uma expressão de paz no seu olhar, murmurou algumas palavras para ele, que chorou em resposta.

Quando as chamas azuis já começavam a lamber seu corpo, Ravena olhou para os céus, fechou seus olhos e proferiu palavras desconhecidas com voz de trovão.
Os céus, em resposta, se fecharam tornando-se negros, relâmpagos o tomaram por completo, até que um último raio caiu cortando os céus à um lugar próximo. Seu corpo já não tinha mais vida. O primeiro caiu de joelhos no chão aos prantos.  Rachel sentiu um vazio enorme preencher seu interior, algo de valor inestimável havia sido perdido para sempre, mas ela não sabia dizer o que era. A mulher que carregava a garota abafou um grito de ódio, voltou a correr para a mata, sem olhar para trás.

As vistas de Rachel tornaram-se escuras, seu corpo ficou frio de repente. Queria gritar, mas não conseguia, algo parecia estar sufocando-a. Abriu os olhos. Estava deitada em uma cama, em um quarto branco, algo prendia seu pescoço e braços. Sua cabeça doía muito, em sua língua sentia um gosto amargo. Era uma enfermaria.

Rachel levantou seu corpo, estava com um cordão cervical, soro no braço esquerdo. Havia um curativo na testa, sentia uma dor forte nos ombros.
- Mas que merda, o que... - estava algemada à cama pelo braço direito. - Droga! - gritou chacoalhando o braço algemado.
Uma enfermeira entrou no quarto, estava com uma expressão séria e ao mesmo tempo incomodada.
- Não grite senhorita, há outros enfermos que estão descansando. - disse aproximando-se.
- Me tire daqui, tenho que ir embora. Onde estão minhas coisas?! Onde está minha mochila?! - disse Rachel com a voz alterada, ainda chacoalhando o braço algemado.
- Já disse para se acalmar! Suas coisas estão na mesa ao lado. - de fato, estava tudo em um saco plástico numa cômoda ao lado da cama, abaixo de um pequeno abajur de cerâmica. Rachel deu uma olhada no local. Seu leito estava coberto por uma cortina sanfonada à esquerda, havia um balcão à frente da cama com remédios e instrumentos médicos, à direita um armário fechado de duas portas. Ao lado da cama, atrás da cómoda, uma janela fechada, com grades pelo lado de fora.
- Porque estou algemada nesta cama?! - disse já mais calma.
- Assim está melhor. O delegado pediu que fosse assim. A senhorita estava sem os documentos do carro, sem habilitação. Ele logo virá tomar seu depoimento. - disse a enfermeira xecando o pulso da garota.
- Eu fui a vítima! - exaltou-se, sendo repreendida por um olhar fulminante da enfermeira. - Eu fui a vítima, o outro carro atravessou o sinal, acabou comigo! Ele devia estar preso. - disse em um tom mais baixo.
- Diga isso ao delegado. Em todo caso, apenas te passei o que me foi dito. Falarei com ele agora e logo estará aqui, assim você poderá esclarecer tudo. - a enfermeira virou-se de costas para sair do quarto, quando Rachel a golpeou na cabeça com o abajur, fazendo-a cair inconsciente.
- Não vou esclarecer nada com ninguém sua vadia. - disse ao corpo inerte da enfermeira, caído no chão.
Rachel tinha que agir rápido, pegou suas coisas com extrema dificuldade, devido a dor no ombro, rasgou o saco plástico e pegou em sua mochila uma chave de algemas, escondida em uma costura.
- Agradecimentos aos anos de prática nas ruas. - livrou-se das algemas, tirou o soro do braço esquerdo e levantou-se da cama, sentindo muita dor pelo corpo. Foi até a mesa à frente e procurou entre os remédios de forma despreocupada por alguma coisa para dor, sem êxito, abriu o armário ao lado, pegou algumas pílulas e engoliu em seco.
Suas roupas estavam no saco, mas preferiu pegar outras na mochila, trocou-se, vestindo uma legging preta e um agasalho cinza escuro, utilizou-se das botas que já estava usando.

Foi até o banheiro da enfermaria, após uma rápida olhada pela porta de saída e passando pelos outros quartos fechados pelas portas sanfonadas, viu-se no espelho, estava pior do que pensava, os lábios feridos levemente, supercilio esquerdo cortado e um curativo do lado direito. Tirou o colar cervical, seu pescoço estava um pouco roxo, tocou-se devagar, sentiu uma dor de leve. Colocou um cachecol que havia na mochila, olhou-se novamente no espelho. Por um instante viu o rosto de Ravena em seu próprio rosto. Sentiu suas mãos gelarem.
Olhou para a janela do banheiro, era grande e não havia grades do lado de fora. Checou sua mochila, o livro estava ali. Jogou-a pela janela e logo após, com extrema dificuldade saiu pela mesma, caindo em um jardim. Para sua sorte não havia ninguém.

A garota andou normalmente, xecando os locais por onde passava à procura de algum carro da polícia.
- Barra limpa. - disse suspirando. Andou apressada pelas ruas, indo novamente ao encontro de Sarah.
- Agora será um pouco mais difícil. - pensou, já que perdera o carro. No entanto, haveria tempo para pensar sobre o sonho que tivera... Quem era Ravena Hawkeye? Por que nunca houvera escutado este nome antes, mesmo que no sonho fora tão familiar? Que ligação seria esta entre ela e um Paladino, aquele que trabalhava para uma Ordem destinada a dizimar sua família?!

Rachel nunca se sentiu tão perdida como agora.

SPELL - O Livro das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora