Capítulo 1

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Não esperava aquela ligação, assim como ninguém esperaria que logo ele pudesse ser o responsável por tal acontecimento. Eu o conhecia o suficiente para saber que ele estava sob muita pressão, fazia anos que era uma bomba relógio, mas sua explosão era sempre adiada, tranquilizada por qualquer coisa que lhe desse esperança.

            A verdade é que duvidava de sua coragem. Percebi que ele estava mudado de uns tempos para cá. Falava pouco e estava agitado e distraído. Como se em seu silêncio, sua mente trabalhasse mil palavras e planos. Não me manifestei, pois já havia presenciado isso antes. Ele precisava de uma semana de isolamento e meditação de vez em quando, então voltava ao seu normal como se nada tivesse acontecido. Era a pressão que seu trabalho lhe impunha. Tinha que soltar todo o peso que carregava de vez em quando e tudo aconteceu ao mesmo tempo, praticamente. Tornou-se insustentável.

            Admito que sempre o vira como um fraco, um covarde cheio de planos e ilusões. Um otimista perfeito. Justiça foi a primeira palavra que o chamou atenção na infância e a mesma lhe acompanhou por toda a vida. Era por ela que lutava que vivia, fez inimigos por essa palavra. Ganhou e perdeu tudo e ela nem mesmo lhe fez uma sagrada aparição de um segundo para premiá-lo por seus esforços.

            Ernesto teve uma origem simples, no interior de Santa Catarina. Seu pai tinha um trabalho comum, cercado por documentos em um cubículo que lhe servia como segunda casa, em uma fábrica de sapatos muito conhecida na cidade. Sua mãe era caixa no banco. Ambos com pouco estudo e muita vontade. Queriam a vida comum, casa própria, filho, carro popular, vizinhança falsamente amigável. Tudo que todos têm, mesmo que, para tanto, tivessem que se aproximar da infelicidade, ou pior, da indiferença. Tinham sonhos mais ousados, como todas as outras pessoas. Viagens a Europa e a África, a universidade que eles não puderam fazer no tempo certo, uma carreira diferente, então Marcela pronunciou as palavras que trazem o freio a qualquer sonho – estou grávida.

            Eram estáveis, podiam criar uma criança e até planejavam algo assim em alguns poucos anos. No entanto sentiam que poderiam ter vivido mais um pouco. Era o arrependimento que lhes perfurava a consciência com uma fina agulha. Não queriam se sentir assim, mas era inevitável. Estava lá, era um fato. Era possível que em algum lugar houvesse um homem que satisfizesse melhor a Marcela ou uma mulher melhor que ela para Alberto. Experiências que agora nunca viveriam e era tudo culpa do maldito compromisso; dos amigos e parentes que insistiam que era hora de casar, como se todos tivessem o dever de seguir a mesma corrente de insatisfação que eles seguiram. Mas será que não se amavam? Não queriam viver um sem o outro, já o teriam feito antes se assim desejassem. Então o que trazia o arrependimento? Fruto do medo, talvez. Medo de saber que antes era só de suas vidas que cuidavam, mas agora estavam gerando uma terceira vida e todo o futuro desta estava nas mãos deles.

            Finalmente encararam os fatos. Já não eram mais crianças em busca de aventura. Aproximavam-se dos trinta anos, logo aceitaram o irrecusável. Os meses passaram e a angustia aos poucos foi embora, levando consigo o medo e o arrependimento. Ainda assim este último deixou uma leve cicatriz. Tinham conversado e se acostumado à ideia. Riam quando diziam um para o outro que se tornaram pais de família. Que surpresa, nunca se julgaram capazes de receber tal título, até acontecer.

            Ernesto seria seu nome, tal qual seu avô, pai de seu pai. Morto sem nem mesmo ver o filho sair da dura adolescência. Morreu com medo e o sentimento do trabalho incompleto. O pior trabalho para deixar sem completar, mas o único sobre o qual não é possível ter qualquer controle – a vida. Seu filho cresceu. Trabalhou e trabalhou, perdeu algumas oportunidades, mas garantia que não faria isso com seu filho. Aquele amável irresponsável bebia e comia o que bem lhe caísse à mesa, além disso, o trabalho estressante como policial não ajudava. Fora avisado inúmeras vezes sobre seu estilo de vida, mas além de tudo era teimoso, não ouvia os médicos, sua esposa, nem ninguém que tentasse lhe salvar. Era a forma que ele encontrara para liberar a pressão da vida de policial. Morreu de teimosia. Alberto sofreu como uma criança, justo quando o que mais queria era deixar a infância. A infância se foi, é verdade, e a juventude nem teve tempo de chegar. Era o novo homem da casa, tinha que cuidar da mãe, arrasada pela perda do marido. Sua mãe, Ivone, era uma senhora tradicional. Deixou o emprego ao engravidar, então não tinha como se manter sozinha.

InocênciaWhere stories live. Discover now