Capítulo 6

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Chegou o ano do famigerado vestibular. Época em que os neurônios estudantis movem-se como um enxame de abelhas assistindo sua colmeia incendiada. Todos precisam estudar horas e mais horas, nunca têm tempo o suficiente e necessitam atuar cada detalhe desse desespero para que ninguém duvide da seriedade da situação. Eu não. Queria estudar filosofia e, para esse curso, a competição era mínima; seria necessário esforço para não passar.  Acho até que me dediquei menos ainda naquele ano.

Filosofia, no que eu estava pensando quando tomei essa decisão? Sabia que esse curso não me direcionaria para carreira nenhuma, mas era o que tinha vontade de estudar, conhecer mais sobre. Depois eu pensava no resto. Poderia dar aulas, escrever teses, viver de forma acadêmica. Bastava adicionar um cachimbo, garrafas de vinho tinto seco e desenvolver ainda mais meu lado libertino, que minha persona estaria completamente formada.

Meus pais eram contra a decisão. O que você vai fazer quando nós não estivermos mais aqui? – minha mãe questionava – Professor. Você? Tá bom! Assista as notícias, essa é uma profissão perdida. Ninguém mais faz isso por vontade própria. Todo o dia aparece professor sendo ameaçado de morte, por uma molecada de dez anos de idade. E esses são professores de matemática, física, matérias importantes. Pensa no que acontece com professor de filosofia! Pior ainda essa sua história de acadêmico. Você acha que esse é o século XIX, quando umas teses publicadas e um título de doutor valiam de alguma coisa? Não, ninguém se importa mais. Hoje as coisas são rápidas, meu filho, dinâmicas. Computadores, tecnologia, esse é o caminho para o sucesso. – Então, quando minha mãe terminava seu discurso motivacional, vinha meu pai com sua história de sempre – Veja bem meu filho, ainda é tempo de você trabalhar para tomar conta dos meus negócios. Eu vou precisar de um sucessor, por que não meu próprio filho? Não se engane pensando que só porque eu te dei a vida você vai ter qualquer privilégio. Pelo contrário, se quiser estudar, começa como estágio do escritório comercial, se não quiser, trabalha como boy; de qualquer forma, daqui a quinze ou vinte anos, se você for competente – se não for, acredite em mim que eu mesmo te mando pra rua -, estará no meu lugar ou talvez seja meu vice, até porque não estarei tão velho até lá. Que tal?

Não queria. Não queria tocar em um centavo de meus pais. Admirava todo o trabalho árduo e agradecia por todas as oportunidades que me deram – meu maior desejo era devolver cada centavo que comigo foi gasto -, mas queria ser eu mesmo. Se aceitasse uma oportunidade dessas, desde meu primeiro dia, seria o filho do seu Augusto. Se existe uma coisa que sempre detestei foi a posição de herdeiro. Queria lutar pelo meu nome, por minhas posses, por tudo que viesse a ser meu.

Dizia tudo isso a eles, mas não entendiam nada, só gerava discussão. Então quer dizer que o que vem de mim não é bom o suficiente pra você, seu ingrato – dizia meu pai, fingindo sentir-se ofendido. Por que você não pode pelo menos ser médico ou advogado, como aquele seu amigo...qual o nome dele mesmo? Aquele que está sempre aqui? – minha mãe completava. E tudo se distorcia e ficava ainda pior conforme a conversa avançava. No fim, pouco antes do início das inscrições para o vestibular, aceitaram minhas vontades. Disseram que eu era jovem e tinha todo o direito de errar, e que eu sempre seria bem-vindo na empresa de meu pai, e, mais importante ainda, tinha o direito de mudar de curso quando quisesse, quando a “fase de intelectual passasse”.

Ernesto e Fabi continuavam a mesma coisa. Talvez estivessem ainda mais unidos. Passavam dias e noites juntos estudando e fazendo planos – qual faculdade, onde, como viveriam, se dividiriam ou não um apartamento, planos bastante avançados para a idade dos dois. Ele em momento algum pensou em fazer algo que não fosse . Seria um advogado, mas não um advogado comum, um advogado honesto, correto, mais interessado na justiça que no número de clientes e de causas ganhas e dinheiro. Ela seria socióloga. Não apenas uma socióloga, mais a melhor. Aquela que desenvolveria um método para tornar a Terra um lugar melhor para se viver, com pessoas boas, vivendo pacificamente e de modo que pessoas como seu namorado não fossem mais vistos como iludidos serem em extinção, mas sim como a maioria – como o óbvio. Compartilhavam de uma visão socialista da sociedade – coisa de adolescente -, acreditando que era possível viver de forma igualitária, se todos estivessem dispostos a sacrificar um mínimo pelo bem geral. Para mim, esse era o problema. Ninguém está disposto a sacrificar o mínimo pelo bem de nada. Os poucos que dizem estar, raramente têm posses para sacrificar.

InocênciaWhere stories live. Discover now