O telefone toca, são três da manhã. Toca uma vez; duas; três; ela acorda, mas se recusa a levantar para atender. Tem medo que seja um desses falsos sequestros, moda entre os criminosos atuais. Normalmente ela não acreditaria nisso, mas agora que seu filho não está mais com ela, não sabe como iria reagir. E se fosse um sequestro de verdade? Iria simplesmente seguir as instruções ou tentaria chamar a polícia? Não, a polícia não salvou seu marido, muito menos salvariam seu filho. O telefone grita feito um recém-nascido esfomeado, desesperado e constante. A cada toque parece mais alto, mais agudo, penetrando fundo em seus ouvidos e causando uma dor insuportável.
Chega! Ela se levanta e atende. Sente os músculos relaxarem com o fim do barulho, embora ainda sinta as vibrações dos toques em sua mente.
- Alô – ela diz, mas ninguém responde. – Alô – nada. – Cacete! Alô!
Ouve uma voz. Era familiar, mas dizia coisas que não faziam sentido para o momento. A embriaguez do sono a impedia de dar sentido a qualquer uma daquelas palavras, até que ela reconhecesse a voz. Há anos que não a ouvia; só podia ser relacionada ao assassinato de seu marido. Sim, o policial, reconheceria seu tom monótono em qualquer lugar, em qualquer situação. Isso explica sua repulsa instantânea.
Ele dizia que seu marido havia morrido. Mas ela já sabia disso, não sabia? Fazia anos que isso acontecera. Ou estava confundindo as coisas? Não se pôde evitar; era provável que a causa da morte tenha sido reação. Os bandidos o abordaram, com interesse em levar o carro – tinham acabado de roubar uma loja de conveniência, não muito distante de lá e precisavam fugir. Seu marido deve ter se assustado, o que assustou os bandidos. Essa é a única explicação lógica para o incidente, minha senhora. Sentimos muito. Ele continuava a falar, sem entender que Marcela já não sabia de nada. Chorava, apenas. Chorava como pensava já ter chorado uma vez, pensando que antes havia sido uma ilusão e agora sim era real. Alberto estava morto.
O policial, do outro lado da linha, querendo dar fim à confusão, pede para que Marcela venha até a cena do crime. Isso é um absurdo! Ela bate o telefone no gancho e se vira em direção a sua cama, que agora é uma viatura. Ela conhece essa rua – mesmo tendo evitado passar por ela desde aquele dia -, fica a duas quadras de sua igreja, mas não sabe dizer por que saíra de casa, tão tarde da noite. Estava escuro, não era só a escuridão comum da madrugada, mas também via massas negras cobrindo as passagens da rua, como se o universo se limitasse àquele pequeno momento. A única iluminação na rua era o farol da viatura, emitindo uma forte luz vermelha, que ia e voltava em círculos rápidos. Ela sabia que a massa negra cobria um cruzamento. Na esquina, logo antes do fim, havia um semáforo, vermelho desde quando ela chegara, contribuindo com a iluminação. Os prédios que cercavam aquela ilha de asfalto estavam completamente apagados, assim como as luzes da rua.
Aquela rua tinha duas faixas; Alberto sabia que não deveria parar nos semáforos tão tarde da noite, mas era possível que, naquele momento, alguém passasse do outro lado ou fosse perigoso não parar. Foi assim que o pegaram. Na faixa ao lado da que deveria estar seu carro, havia uma grande mancha de sangue, que, quando ela chegou, parecia bastante seca e escurecida, mas que aos poucos parecia se umedecer novamente. Ao lado dessa mancha, um cadáver aparecia lentamente. De início ele era transparente como um fantasma, até que foi ficando sólido, chegando a sua forma original. O sangue, agora completamente líquido, se mexia sob o corpo de Alberto. Marcela não conseguia desviar os olhos do fenômeno, por mais que aquilo a repugnasse.
Pedaços de cérebro, crânio e cabelo, se juntavam ao sangue, voltando ao seu corpo de origem. Tudo muito lentamente, como se a imagem, tão real para ela, viesse de uma velha fita de vídeo sendo rebobinada em câmera lenta. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, um carro – seu Gol ’96 -, voltava atravessava, de ré, a parede de escuridão, invadindo a ilha. As portas do veículo se abriram e dois homens sem rosto saíram de dentro dele. E o sangue se movia, em uma dança pelos interiores da cabeça do defunto. Os dois homens tinham uma conversa nervosa em frente ao carro – um de frente para o corpo, o outro ao lado, próximo aos pés. Alberto, ainda sem vida, começou a se levantar, com sua cabeça ainda se reconstituindo.

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Inocência
Fiksi UmumEssa história trata justamente sobre seu título. Inocência em seus mais diferentes significados, e as mais diferentes formas de perdê-la ao longo de uma vida. *Isso é um projeto de romance ainda não terminado ou revisado. Qualquer tipo de comentário...