Uma semana depois da prova que deu início a todo esse caso, Geraldo foi substituído. Ela era mais jovem, muito mais jovem, prestes a chegar aos trinta anos, e minhas memórias infantis a formam como uma mulher de grande beleza, como uma modelo, fina e graciosa, com grandes olhos verdes de beleza bloqueada pelo reflexo do vidro de seus óculos pequenos e sutis. Seus longos cabelos ruivos flutuavam pela sala, quando ela caminhava de um lado para o outro com o entusiasmo da oportunidade aproveitada. Era claro que ela queria ser professora e que eu, assim como todos os meninos da sala, sentia juvenil atração por ela.
Mas divago em minhas próprias memórias. Esses sentimentos não eram nada além de coisa da idade, sumiram junto com a infância, tão logo que nem percebi sua partida, mesmo ela tendo feito parte de meus primeiros sonhos e desejos. No entanto, nunca recebemos informações concretas sobre o destino de Geraldo. Uns diziam suicídio, outros velhice, e alguns insistiam que ele teve sua cabeça esmagada por um martelo empunhado por sua filha louca. O que disseram foi que ele não estaria mais presente na escola. Os sussurros falavam morte e o resto era distorção. Minha reação no momento foi de alívio e disso, hoje que sei o que pode haver acontecido, me arrependo, mas na época poderia colar novamente para salvar minha nota, concederia um ou dois favores para o tal do Ernesto e pronto. A professora Carla não seria tão fácil quanto o velho Geraldo, mas deveria haver um jeito.
Conversávamos todos os dias, eu e Ernesto, no mesmo lugar de nossa primeira troca de palavras. Era um hábito dele, sentar ali todos os dias e assistir as brincadeiras que o cercavam. Contemplar a infantilidade que ele negava. Então, no meio de uma de nossas conversas, o interrompi dizendo:
- Agora que você me conhece, me entregaria de novo caso me visse colando em uma prova?
- Mas é claro.
- Como assim? Pensei que você fosse um amigo.
- E sou, mas o certo é mais importante que a amizade – ele dizia calmamente.
- E entregar os outros é certo?
- Não é entregar, é uma questão de justiça.
Justiça. Ernesto aprendera o significado dessa palavra muito cedo em sua vida. Talvez fosse um prodígio, talvez fosse apenas muito curioso, mas quando criança, antes de nos conhecermos, logo ao conhecer a leitura, passava horas do dia brincando com um grande e antigo dicionário ilustrado de sua família. Folheava, lia as palavras e seus significados, sentado em frente à televisão, assistindo desenhos animados. Gostava dos super-heróis. Com eles ouviu a tal palavra e rapidamente a procurou no livrão, como ele chamava seu brinquedo favorito.
“Justiça - s.f. Virtude moral pela qual se atribui a cada indivíduo o que lhe compete: praticar a justiça. Direito: ter a justiça a seu lado. Ação ou poder de julgar alguém, punindo ou recompensando: administração da justiça. Conjunto de tribunais ou magistrados: recorrer à justiça.”
Então, arrastando consigo o dicionário de peso quase igual ao seu próprio corpo, como uma formiga carregando migalhas, foi até a cozinha e perguntou à mãe, que lavava os pratos do jantar, o significado daquela palavra tão repetida e tão fascinante:
- Justiça? – ela perguntou, enquanto pensava em uma resposta compreensível para o menino. – Justiça é fazer a coisa certa.
E ele ouviu aquelas poucas palavras e pensou naquilo durante o dia. No certo e no errado, como saber o que é o que e, principalmente, como fazer que a justiça se cumprisse em todos os casos. Na televisão sempre acontecia. O herói aparecia no último minuto salvando o dia e punindo o bandido – o errado. Era isso que ele queria fazer, mas não era nenhum herói. Independentemente, essa seria sua função no mundo. Fazer justiça.

YOU ARE READING
Inocência
General FictionEssa história trata justamente sobre seu título. Inocência em seus mais diferentes significados, e as mais diferentes formas de perdê-la ao longo de uma vida. *Isso é um projeto de romance ainda não terminado ou revisado. Qualquer tipo de comentário...