Capítulo 3

43 1 0
                                        

A escola, nossos colegas de sala, era tudo o mesmo, mas tinha um tom diferente, uma atmosfera própria. O que define uma atmosfera? Algo tão sutil como a diferença entre uma xícara de café e outra de chá. A xícara está lá e seu conteúdo é um mistério, contudo é esse mistério que define toda a atmosfera da situação, toda a personalidade de quem bebe e a ação que ele realiza enquanto sorve o líquido. O chá é uma atmosfera por si só. O café é outra, diretamente oposta. A escola antes de meus quinze anos era uma; agora ao chegar nessa idade, era outra. Aquela velha história que todos já conhecem, dos hormônios e da confusão, os instintos animais que decidem acordar, depois de um período curto de ameaças.

Novos rostos compunham a fauna que preenchia as carteiras daquela pequena sala, mas conheci poucos deles o suficiente para traçar personalidade, lembrar-me da aparência ou manter na memória. Sei que algumas figuras são onipresentes em qualquer lugar – o gênio exibido; o imbecil piadista; o ego-maníaco que frequenta academias desde seus quatorze anos; a gostosa superficial, mas que eu desejava profundamente, independente das náuseas que sua voz me causava; o tímido desinteressado; a tímida desinteressada; e, é claro, os psicopatas em potencial. Aqueles com personalidades similares costumavam se unir em pequenos grupos, como em uma matilha, por proteção e medo da solidão. Não que qualquer um deles tivesse medo de ficar sozinho, o medo era de ser visto só e, portanto, parecer solitário; alguns poucos não se importavam nem um pouco com a impressão alheia e, por isso mesmo, não geravam qualquer impressão, mas aqueles que pareciam se esforçar para conseguir qualquer sinal de afeto, eram instantaneamente rejeitados como um leproso. Enfim, uma escola como qualquer outra.

Minha amizade com Ernesto se mantinha firme. Éramos tidos como tímidos, embora isso nem se aproximasse da verdade, o que acontecia é que as interações sociais com aquelas pessoas nos entediavam profundamente, então trocamos a convivência pela cultura. Formamos nosso gosto por literatura, cinema e música, nessa época e era sobre isso que conversávamos.

Além da cultura, após a morte de Alberto, Ernesto e Marcela se entregaram a igreja. Catolicismo era quase genético naquela família, neles esse gene parecia ser recessivo, mas o tempo o despertou. Mais do que fé, sentiam necessidade da crença em algo maior. Deus, transcendência, paraíso, vida após a morte, qualquer coisa que negue o aparente fato de que a vida é um ônibus descontrolado com destino à morte e sem paradas no percurso. Isso os ajudava a sentir Alberto ao lado deles, mesmo que só na imaginação; de fato não faziam ideia se acreditavam mesmo, se era verdade ou se era ilusão – a sensação de alívio bastava. Iam à igreja todos os domingos, e rezavam pela alma daquele homem e pelas suas próprias almas todos os dias. Uns diriam que eles não eram crentes dignos, pois não seguiam os dogmas à risca – até chegavam a ridicularizar mentalmente alguns mais conservadores -, não acreditavam na palavra divina da bíblia, muito menos na santidade do padre, até prefeririam abandonar a igreja por completo e usar suas mentes e almas como um templo, contudo a igreja era um símbolo. Sem aquela construção poderosa sobre suas cabeças de carne demasiado humana, esqueceriam aquele compromisso com o tempo.

Não entendia – nem posso dizer que entendo ainda – o conceito de fé. Meus pais, ambos ainda vivos, nunca tiveram crenças definidas. Meu pai não se dizia nada, nunca falava sobre crenças, nem pensava no divino. A vida já é tanto para se preocupar, que qualquer coisa que venha depois não passa de um bônus. Até preferiria se tudo acabasse com a morte. Imagine só a eternidade! Eternidade de paz ou tortura, ambos são promessas de castigo. Cinco minutos de paz para ele, homem de negócios, já era angustiante; e tortura raramente pode ser boa, que dirá eterna. Era um agnóstico por definição – não era uma questão de ter ou ter fé, ele simplesmente não se importava.

Já minha mãe nasceu católica e se desiludiu com os escândalos sobre os padres; virou evangélica, mas se sentiu sufocada pela rigidez e indignada com os roubos; foi budista, hare krishna, hinduísta, protestante, espírita, até mesmo ateísta por uma semana e meia quando se viu sem opções; tinha medo dos muçulmanos e pais-de-santo, e assim ela riscava sua lista de opções para preencher sua alma. Essa inaptidão para se adaptar a qualquer coisa espiritual lhe incomodava profundamente. Admirava tanto os homens de fé, tão sábios e cheios de frases tranquilizantes, mas não poderia estar mais distante deles. Então desistiu e formou sua própria fé, com um pouco de tudo aquilo que lhe atraía em todas as religiões e filosofias que ela seguira; eliminou uma ou duas contradições e estava feito. Ainda não era sábia, mas podia manter conversa com suas amigas religiosas de igual para igual, sempre as impressionando com seu desprendimento e vasta experiência.

InocênciaWhere stories live. Discover now