17. Quando volto ao topo sem ter sido convidado

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- Eu não disse que o café era bom?

Vagner levou a xícara à boca e cheirou o líquido, preto e amargo, antes de um novo gole. Ele tinha razão: o Bar da Delma deve servir o melhor café de Cidade Nova. Embora eu tenha frequentado a Vila dos Afogados inúmeras vezes antes, nunca parei em nenhum de seus bares ou restaurantes. Sempre estive aqui a trabalho, como policial e como detetive. Não fui bem recebido em nenhum dos dois papeis.

- Eu não conhecia o Doutor.

Balançava a minha xícara levemente, o café já pela metade.

- Não se sinta culpado, Rubens. Pouca gente conhece.

Culpa? Não, nenhuma. Apenas um leve sentimento de incompetência por nunca ter verificado os rumores sobre esta figura escorregadia.

- Ele ficou bem nervoso com a gente.

- Daqui a uns dias passa. - Vagner disse. - Não se preocupe com isso.

- Bom, pelo menos o curativo ficou muito bom.

Mexi a orelha para cima e para baixo, um movimento suave e ridículo que muitos acham natural para um coelho. Vagner não prestou atenção; na verdade, nem deve ter ouvido o que eu disse. Estávamos sentados na mesa mais ao fundo e ele olhava para os cartazes grudados na parede: propagandas de cervejas há muito não mais produzidas. O bar fica numa esquina, é um estabelecimento apertado, com quatro mesas e a bancada. Atrás da máquina registradora, uma senhora esguia de maquiagem pesada e quase albina, vestido vermelho e unhas pretas. Ao seu lado, o marido e cozinheiro, um anta um pouco magro para sua espécie.

- Vagner. - ele me olhou. Levei alguns segundos para pensar no que diria a seguir. - O Bruno me contou que uma vez você o chamou para um serviço...

- Clarissa. - disse, sem piscar os olhos. - Eu lembro o nome da menina.

Engoli em seco e perguntei o óbvio:

- Então, o esquema é mesmo verdade?

- Você sabe que sim, detetive. E sempre foi um dos motivos para as brigas com meu pai. Eu não concordava com aquilo. - outro gole. - É um negócio arriscado e que não dá tanto dinheiro assim.

- Como funciona?

- Depois que assumi os negócios, cortei as relações dos Lopes com isso. Eu só posso te dizer como funcionava. As escolas do Jules Fabian acolhiam crianças e adolescentes do jeito que o Gustavo falou. Eles tinham um programa de intercâmbio em outros países só para as meninas orfãs, já ganharam até prêmio por isso. - o urso sorriu; só percebi a ironia quando ele disse em seguida: - Tudo fachada. Elas eram traficadas e viravam prostitutas até o fim da vida.

- E o seu pai entrava nisso...

- As escolas do Jules forneciam as meninas, o meu pai e um juiz amigo da minha família forneciam a legalização da ida delas para fora. E eles dividiam os lucros.

- Mas, agora que você está fora, como?...

- O sacerdote é esperto. Com certeza, achou alguém para cuidar da viagem das meninas. A Clarissa... - encarou a xícara vazia, sua asa ao redor do dedo volumoso e albino. - Depois que o Bruno resgatou a menina, eu a enviei para outra cidade, ficou sob os cuidados de um amigo. Eu disse ao meu pai que ela havia fugido.

Ele deixou a xícara na mesa. Pensei que fosse pedir uma nova dose, mas o urso levou um minuto até retomar:

- O meu amigo levou a Clarissa de volta para o Jules, disse que tinha encontrado a menina. Quando eu fui procurar ele, o cara confessou que recebeu uma boa grana para ficar calado. - Vagner virou o rosto na minha direção - Espero que o dinheiro tenha valido a pena, porque ele vai passar o resto da vida sem pau e sem saco. - e sorriu.

Memória de GorilaOnde histórias criam vida. Descubra agora