21. Quando um amigo ataca o outro

6 0 0
                                    

Evandro recuou. Um rastro vermelho vivo descia pelo seu chifre. Cássio se retorcia, sua boca semicerrada emitia um som grave e contínuo, apoiado na parede, as mãos entrelaçadas na barriga. Empurrei o ônix para trás e me abaixei para examinar o bisão.

Sua mão direita foi quase trespassada; a ferida, um abismo que ia do dedo mindinho ao início do pulso, soluçava sangue. O bisão urrou quando a toquei. Abri a camisa e tirei a camiseta branca que usava por baixo. Enrolei sua mão com muita pressa e nenhum cuidado. O bisão gemia e apertava os lábios.

— Nós vamos te levar para um hospital — eu disse, vestindo minha camisa.

— Mas não vai ser em Cidade Nova — Evandro completou. — Não vamos te dar a chance de contar para quem te mandou aqui.

Levantei-me e procurei pelo sobretudo: em cima da pia, ao lado do chapéu.

— Foi você que matou o Gustavo, Cássio? — perguntei. Ele gemeu ainda mais forte. Não esperava que ele fosse responder de imediato. Em minha experiência de boxeador, tive supercílios abertos, nariz quebrado, ombros deslocados e punhos arruinados, mas nada como uma mão rasgada ao meio.

— Não. — A última vogal se estendeu por alguns segundos.

Abaixei-me novamente, cotovelos sobre os joelhos, pés arqueados nas pontas dos sapatos:

— Não mesmo, novilho?

O pêlo abaixo dos olhos dele estava encharcado.

— Não, porra! — gritou. E eu começava a me preocupar com mais alguém entrando neste banheiro. — Eu... — soluçou — não quis. O pessoal me chamou de frouxo, que eu ia perder uma grana boa, mas eu não fui.

— Que pessoal?

— Um cara e uma menina, eles eram seguranças da escola da igreja e — mais um gemido, minha camiseta já toda vermelha ao redor da mão dele — ficaram sem trabalho depois que ela fechou. São uns amigos meus.

— Pedro e Márcia, eu conheço os dois. — Evandro completou, em pé ainda atrás de mim, com os braços cruzados.

— Então, eles espancaram o Gustavo. Mas você, um sujeito de caráter, não quis participar. É isso? E agora veio aqui, sozinho, para dar uma facada no Doutor e quer que eu acredite.

— Eu não sou bom — disse e abaixou a cabeça imensa. — Eu sou um frouxo. Um merda. Eu não ia matar o Doutor, — ergueu o rosto na direção do amigo — Evandro. Eu só ia dar o recado e assustar ele. Se eu quisesse matar o Doutor, eu não ia esperar ele sair da cidade. — Evandro engoliu em seco. Cássio prosseguiu. — O Pedro me avisou que iam dar um jeito nele, aí falei que eu fazia questão, que não ia querer que o Doutor morresse nas mãos de quem ele nem conhecia. Que ia ser crueldade. Que não era honrado.

— Honrado? — Evandro gritou. — Tu vem falar de honra depois de entregar o Gustavo?

— Eu fui idiota, porra! Eu fiz besteira! Tava precisando de grana, tava na merda. Eu sabia que os dois ainda tinham ligação com a igreja, e contei que o Gustavo falou da Renata para vocês. Eu achava que eles iam dar uma prensa no Gustavo, um susto e o cara ia sumir daqui. Eu fiquei assustado quando eles — soluço — me chamaram para matar ele.

— Você tem razão — eu disse. — Você é burro mesmo. Depois que mataram o Otto, acha mesmo que iam parar? — Segurei o rosto dele, tocando as bochechas largas; não de forma amistosa, mas como um mafioso indelicado. — Quer uma dica, novilho? Some. Vocês dois. — Levantei a cabeça e olhei para Evandro. — Porque eles virão atrás de vocês.

Pensei em completar: como vieram atrás do Otto, do legista que desconfiou de seu suicídio e do próprio Gustavo. A lista começava a ficar extensa. E não ficaria nem um pouco surpreso se este casal, Pedro e Márcia, aparecer em algum lixão aos pés da pedreira.

Memória de GorilaOnde histórias criam vida. Descubra agora