3. Quando usei a noite para tentar esquecer o dia

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Não sei quanto tempo ficamos ali. Agnes com as costas apoiadas na porta da biblioteca e eu, procurando uma forma simples de responder a sua pergunta e de Samuel. Fomos interrompidos por um alerta sonoro que parecia vir das paredes. Ela ignorou o segundo e o terceiro alarmes. Na quarta vez, atravessou a sala com pressa, as sandálias batendo no assoalho como saltos. Atrás de uma das estantes, ela apertou um botão:

- O que é?

Chiado. Depois a voz grossa do motorista lobo-marinho:

- O senhor Vagner Lopes está na entrada, senhora. Ele quer lhe ver.

Levou a mão direita a testa e arreganhou os dentes, com a cabeça baixa. Respirou fundo e respondeu:

- Diga a ele que agradeço a preocupação, mas que quero, não, diga que preciso ficar sozinha hoje.

- Sim, senhora.

Livre daquele diálogo breve, Agnes sentou-se em uma das poltronas verdes ao lado da estante e enfiou o rosto entre as mãos. Não fosse o coque, seu cabelo escorreria pelos braços. Aproximei-me com cuidado, procurando não fazer barulho. Ocupei a outra poltrona de leitura, ao lado dela. Nem mesmo o assobio grave e irritante do couro quando deslizei minhas pernas pelo móvel a fez erguer o rosto.

- Você já pensou… Que talvez o Vagner tenha matado o Otto por ciúmes?

Antes mesmo da última palavra da minha pergunta, Agnes soluçou.

- Tudo o que aquele urso-polar de merda quer comigo é o que eu tenho entre as coxas. - levantou a cabeça e olhou diretamente para mim. - Pode perguntar às outras cinco amantes dele.

- Mas essas coisas acontecem. - cruzei os dedos das mãos, apoiadas nos joelhos. - Uma mulher se insinua para um cara, ele acha que é algo mais e…

- Cala a boca, coelho. Você está me julgando de novo.

Tive vontade de respondê-la com o mínimo possível de educação.

- Não, não estou. - contive-me.

- Meu corpo é só meu e eu faço com ele o que eu bem entender. Se deitei com o Vagner ou com qualquer outro, não é da sua conta, do Samuel e nem dos meus empregados.

- Mas era da conta do Otto. - elevei o tom da voz.

Agnes levantou o dedo indicador. Seus olhos estavam avermelhados.

- Eu nunca fui infiel. Não me importo se você não acredita. - abaixou as mãos e os braços. - Quando eu estive com alguém, eu sempre fui só dele. Sempre. Mas, meu pai, meu pai construiu este lugar. O avô do avô dele ajudou a fundar esta cidade. Você entende? Já eu, eu estava perdendo tudo.

- E o Vagner… - a interrompi, compreendendo aonde chegaria.

- Foi ideia do Samuel. Os dois são amigos, mas ele não estava convencendo o Vagner a fazer um aporte na Villanova.

Atrás dela estavam fileiras de enciclopédias, coleções sobre animais selvagens, dicionários em várias línguas e grossos volumes encadernados sobre guerras antigas.

- Bom, eu acredito que fui bem mais convincente, não acha? - Agnes limpou o nariz e os olhos.

Encaramos um ao outro. Talvez ela tivesse bebido assim que saiu do banho, mas sua voz estava correta, sem embargos, as palavras nítidas. Se estivesse bêbada, todos os fonemas sairiam arredondados e moles. Agnes endireitou o corpo e apoiou os braços no pequeno sofá. Tomou impulso e levantou-se de forma brusca:

- Acho que precisamos descansar, Rubens. - tirou as chaves do bolso. - Amanhã temos um compromisso importante.

Quando ela já estava a meio caminho da porta, eu também me levantei.

Memória de GorilaOnde histórias criam vida. Descubra agora