24. Um acordo

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Agnes jamais havia feito uma refeição dentro de um carro apertado e sujo como o meu. Ela segurava o sanduíche de pernil com uma vontade insuspeita. Deu duas grandes dentadas — e eu achava que estava com fome — antes de falar:

— Duvido que ele volte para casa. — Engoliu. — O Samuel diz ter uns parentes em Lagoa Seca, aposto que foi para lá. Já fez isso outras vezes.

— Você conhece esses parentes? — Janice perguntou e bebeu um gole do suco de laranja.

— Não. O Samuel sempre foi, ao mesmo tempo, invasivo e reservado. Escorregadio. — Um pouco de água. — Vocês têm razão. Ele deve saber de alguma coisa.

A voz de Agnes pareceu diminuir na conclusão, como se não gostasse do que estava falando.

— Eu conversei com ele algumas vezes — eu disse. — Mas, no final das contas, não sei muita coisa sobre o furão.

— Bem-vindo ao meu clube, então — Agnes apontou para mim com o sanduíche.

— Alguma coisa sobre o Samuel que eu deveria saber?

Perguntei como se esperasse um segredo qualquer que Agnes não quisesse revelar. Janice me deu uma cotovelada breve; não gostou do tom da minha voz.

— Ele sempre esteve lá, desde que me lembro por gente. — Pelo visto, a ruiva não havia percebido meu sarcasmo. — Ele era advogado da Villanova Records e, até onde sei, ajudou meu pai em várias causas. Sempre muito bem pago, claro.

Suspirou. Olhou para o pouco que ainda restava do sanduíche entre as mãos. Não era um diálogo confortável. Eu e Janice nos bancos da frente, virados para Agnes, sentada no meio do banco de trás, um lugar apertado para uma mulher com sua altura.

— A gravadora cresceu rápido. O Samuel quis entrar e o meu pai fez dele um consultor jurídico, com uma parcela das ações. No início, foi uma ótima troca. Mas, depois, a gravadora ficou para trás em relação aos outros negócios da família. Quem podia imaginar que agora é o nosso único?... — Ela ficou olhando para mim por algum tempo antes de concluir. — Não importa. O Samuel é um furão inteligente, refinado, o padrão de vida dele caiu na época.

A cronologia dos eventos ainda está um pouco nebulosa para mim, mas já sei que isso aconteceu quando o experimento de Rose-Lee ganhou a preferência da tríade de Cidade Nova. O império dos Villanova foi tragado pelo apoio ao projeto fracassado do sumo-sacerdote. Fracasso que Samuel lamentou, quando Vitor Lopes simplesmente desapareceu e Eduardo Villanova abandonou o projeto. Guardar o espólio de Rose-Lee na forma de suas extensas anotações e vender a ideia de prosseguir com aquilo para Jules Fabian, agora sozinho na empreitada, foi a boia salvadora para Samuel.

— Ele sempre foi ligado a igreja? Ao sumo-sacerdote?

— Samuel? — Ela sorriu; sua vez de ser sarcástica. — Nunca vi aquele furão orando. O deus dele é outro. Era o poder de nossa santidade que o atraía.

Claro. Samuel usava a ligação com a família Villanova para ganhar acesso às pessoas de poder da cidade.

— Agnes? — Perguntei e virei-me para os lados, como se alguém pudesse nos ouvir. Hesitei. Aquela era a hora ideal para tocar em alguns assuntos delicados. Janice parecia ter percebido minhas intenções, pois mantinha os olhos fixos em mim. — Tem uma coisa sobre a relação entre Samuel e Marina que eu acho que você precisa saber.

— A esta altura, Rubens, nada me surpreende mais. Diga.

— Certo. Nós conversamos com a Marina hoje a tarde.

Janice apressou-se a justificar:

— Foi ela quem pediu.

— Vou direto ao ponto. Nós sabemos que o Samuel trabalhava com um esquema de tráfico de mulheres que envolvia o Jules e suas escolas.

Memória de GorilaOnde histórias criam vida. Descubra agora