Por sorte, nem Samuel estava na mansão dos Villanova. Apenas o segurança da entrada e uma copeira desinteressada em nós dois nos cumprimentaram quando chegamos. Eu e Túlio fomos a cozinha, um corredor amplo, tomado por armários até o teto de um lado e pelo outro de fornos, fogões, pia e utensílios de prata pendurados nos azulejos. Era bem cuidada e, apesar da óbvia excelência dos móveis, não sofisticada. Tínhamos fome e pouco tempo, por isso nos servimos de dois sanduíche simples, feitos às pressas, pão, alface, tomate e fatias generosas de presunto. Túlio engoliu o seu em três mordidas amplas e, em seguida, levantou-se:
— Espera aqui. Vou ver se está tudo livre mesmo.
Concordei com a cabeça, apesar de não gostar da situação. Infelizmente, não consegui arrancar mais nenhum detalhe do motorista enquanto vínhamos. Resumiu-se a repetir o que Otto lhe pedira: trocar livros selecionados da biblioteca por outros, de verdade, pois os livros que o gorila desejava não passavam de cadernos de anotações disfarçados. Não parecia muito, mas, afinal, até agora corri atrás de pistas em livros e papeis. Além disso, por que outra razão alguém teria invadido o nosso escritório se não desconfiasse que Otto havia levado algo para lá? Assim que terminei de beber o suco de laranja, a cabeça comprida de Túlio apareceu na porta:
— Vamos.
Atravessamos um corredor ainda mais largo do que a cozinha, depois a sala onde estive antes, e chegamos à imensa porta da biblioteca. O lobo girou a chave com facilidade, e entramos como crianças em algum cômodo proibido pelos pais.
Túlio coçava as orelhas a toda hora, parecia se esforçar para lembrar onde os livros de interesse de Otto ficavam. Ele passou a palma da mão no queixo, olhou para o fim do corredor e apontou a mais alta das prateleiras. Desta vez, pude observá-las com mais cuidado.
A biblioteca do patriarca Villanova ia do chão ao teto, organizada, se me lembrava bem, em dois grandes grupos: ficção e não-ficção, esquerda e direita. Entre elas, no teto, a imagem de Imhotep, desenhado com milhares de pedras coloridas dispostas ali com o cuidado e a precisão que apenas doses igualmente absurdas de dinheiro e dedicação podem fornecer. O deus observa as longas estantes, mesa de madeira maciça no centro e as quatro poltronas de leitura, um casal à esquerda e o outro à direita. No final de cada estante, uma escada presa a estrutura e com rodinhas de metal nos pés. Patéticos, andando com cuidado, chegamos até a escada do nosso lado. Túlio a pegou com as duas mãos e arrastou até onde eu estava. Com um safanão para baixo, certificou-se de que estava firme:
— Os livros ficam lá em cima — sorriu.
Ele saltou degraus acima, sua agilidade canina a mostra. Subiu até a última prateleira, esticou o braço e passou os dedos pelas lombadas. Seus lábios finos se moviam, recitavam em voz baixa os nomes que lia. Enfim, pegou um dos volumes - grosso, pesado, de capa dura e vermelha - e abriu, equilibrando-o sobre um dos joelhos. Folheou o volume e o devolveu a estante. De novo, dedos sobre as lombadas, tom contido na leitura do título, um livro tão gordo quanto o anterior aberto sobre o joelho, páginas reviradas. Ele fez um "não" com a cabeça.
— O que foi? — perguntei.
— Estes livros... A capa é a mesma, mas...
— Mas?
Enfiou o volume sob a axila e desceu. Mostrou a capa, um título apenas: Mutações e Antropomorfismo, de Rose-Lee Thompson. Abriu o livro com as páginas viradas para mim. Texto impresso, diagramas, ilustrações, algumas bem perturbadoras.
— Trocaram os livros, Rubens.
Nenhuma anotação. Nada. Volumes vulgares (até onde um título daqueles possa ser considerado comum), que um estudante de medicina compraria em qualquer livraria especializada.
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Memória de Gorila
Misterio / SuspensoCidade Nova é uma metrópole tão tropical quanto sufocante, perdida num tempo parecido com sessenta anos atrás no nosso mundo, habitada por mulheres e... homens-animais - todos os machos são animais antropomorfizados. Quando o assistente do detetive...