Chapter Three

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Chovia como um anúncio do fim do mundo e a parelha de fortes cavalos arrastava com dificuldade a pequena carruagem pela estradaenlameada.Açoitado pela chuva, conseguindo ver a estrada somente a cada vezque o clarão de um relâmpago espocava como um flash, iluminando onegror absoluto da noite, o cocheiro gritava com os cavalos, tentando controlá-los e fazendo estalar as rédeas em suas ancas. No interior da carruagem,Wesley II, o famoso doutor Wes, não conseguia manter-se seco, pois as pequenas cortinas,encharcadas, eram batidas pelo vento para dentro da cabine, como sequisessem esbofeteá-lo.Ele sabia ser uma loucura parar à beira da estrada para esperar o fim da tempestade. Era preciso que os cavalos conseguissem levar a carruagem até a pequena estalagem, algumas léguas adiante. Na estalagem, ele e o cocheiro poderiam secar-se e tomar um caldoquente. Dormiriam até a manhã seguinte e o médico sabia que sua esposa não haveria de preocupar-se. Era normal, em sua profissão, impor períodos de solidão à família.Voltava de um parto complicado lhe dera trabalho até a madrugada, e estaria satisfeito com o pequenino varão que ajudara a vir aomundo se aquela tempestade não tivesse desabado com tanta fúria.Pensou na exaustão daquela noite. O bebê estava virado dentro do útero e ele pôde sentir que o cordão umbilical estrangulava-lhe um dos bracinhos. Não teria condições, naquela casa de fazenda distante, de fazer a operação dos césares. Se ele tentasse cortar o ventre da mãe para livrar ofilho, talvez salvasse o bebê, mas a mãe morreria na certa.Lembrou-se do rosto pálido da mulher, gemendo de dor eesbugalhando os olhos para ele, suplicando por duas vidas.Ele conseguira, com as mãos, virar o bebê e desembaraçar o cordão umbilical. Em seguida, o nascimento ocorreu normalmente, operando o milagre que são todos os nascimentos. Um milagre que nunca deixava de fasciná-lo.Se o tempo não estivesse tão desastroso, ele na certa voltaria dormindo no ritmo do sacolejar da carruagem e sorrindo feliz com maisaquele sucesso na profissão que escolhera.
Ele gostava de sua profissão. Sabia que nascera para aquilo. Para lidar com a dor, para desafiar a morte."A morte...", pensava ele. "A morte deva andar aborrecida comigo.Ela sempre acaba vencendo, mas muitas vezes eu consigo adiar a hora marcada... Só que ainda sei tão pouco, tão pouco...".De repente, um tranco afastou-o de seus pensamentos.O cocheiro gritava com os cavalos e puxava as rédeas com força.Sentindo a dor dos cabrestos a apertarem-se contra suas bocas, os cavalos estacaram bruscamente, empinados e fazendo a carruagem rabear na lama.O doutor Wes debruçou-se na janela, recebendo a chuva em meio corpo como se estivesse em um chuveiro.O clarão de um raio, mais forte do que todos, iluminou de branco-azulado toda a estrada à frente, revelando rochas nuas que se elevavam àesquerda da estrada e, à direita, despencavam para baixo, a pouco mais de meio metro de onde se debruçava o médico.Mas, à frente da carruagem, ocupando o centro do clarão, como a principal figura de um quadro, dava para perceber um vulto.Do vulto, parecia vir um grito, desesperado.De braços estendidos para frente, o vulto parecia querer deter acarruagem, bloqueando a estrada com seu corpinho frágil. - Uma criança! É uma criança!- gritou o doutor Wesley,descendo apressado.Passou pelos cavalos, a custos contidos pela força das rédeas, ecorreu para a pequena figura.Dela, uma vozinha frágil fazia-se ouvir: - Por favor...Uma menina! Devia ter uns nove ou dez anos. Molhada até os os ossos, com seu vestidinho leve, olhava com desespero para o doutor.O médico tirou rapidamente o próprio sobretudo. Estava molhado por fora, mas a lã grossa deixara-o seco por dentro. Abraçou a criança envolvendo-a com o casaco. - Menina! O que você está fazendo... - Por favor, meu senhor, por favor, meu senhor! - era só o queconseguia repetir a menina, pálida de frio e pavor.Sentindo a chuva a atravessar-lhe o paletó, o colete e colar-lhe acamisa às costas, o médico pegou a menina nos braços e voltou para acarruagem.Tremendo, a criança soluçava contra seu peito.Deitou-a no banco da carruagem e começou a esfregar-lhe vigorosamente os bracinhos com um pano seco. Uma pneumonia seria um
resultado bastante possível para uma criança fraquinha como aquela,exposta a um tempo como aquele. - O que você está fazendo, na estrada, no meio de uma tempestade dessas? - perguntou ele, só para ouvir a menina falar. Se falasse, se aquecesse, o prognostico poderia ser certamente melhor.Mas os lábios da menina, tremendo de frio, só conseguiam repetir amesma coisa: - Moço, por favor, moço... - Calma, minha filha... - Socorra, por favor! A mamãe... um desastre... - Um desastre? O que aconteceu?Os olhos da menina brilhavam na escuridão do interior dacarruagem. Suas mãozinhas apertavam com força a mão do médico. - Ali adiante... A carruagem caiu na ribanceira. A mamãe! A mamãe está lá. Está muito machucada, mas está respirando. Eu consegui subir até a estrada... É preciso correr. Por favor, moço salve a mamãe!Um desastre! Com aquele tempo! Não havia tempo a perder.O médico tentou acalmar a criança: - Fique calma, menina. Pode deixar. Nós vamos achar a sua mãe.Sou médico. Tenha confiança. - Obrigada. Depressa, moço! - Fique aqui dentro. Vou subir à boléia com o cocheiro e... - Não! - cortou a menina. - Vou junto. Nessa escuridão, o senhor não vai encontrar o lugar certo.O médico olhou para fora, para baixo, em direção ao despenhadeiroque ladeava a estrada. Era verdade. Sem alguém que lhe indicasse o local onde acontecera o acidente, seria impossível descobrir a carruagem caídaantes do amanhecer. - Está bem, querida. Venha comigo.Ainda carregando a garotinha, Wesley subiu à boléia. - Josh! Vamos em frente. Faça os cavalos trotarem. Esta menina escapou viva de um acidente. - Pela virgem! - exclamou o cocheiro. - Ela diz que foi um pouco mais adiante. Vamos devagar. Ela diz que a mãe dela está lá. E que está viva. Vamos!O cocheiro sacudiu as rédeas, fazendo os cavalos moverem-se atrote.Dali em diante, a estrada descia um pouco e dava em uma curva.Wes forçava os olhos, tentando perceber algum indício do acidente, mas a escuridão era completa.Já tinham avançado uns duzentos metros quando a menina gritou,apontando para baixo. - Ali! Pare moço. Mamãe está ali!
O cocheiro deteu os cavalos e desceu rapidamente da boléia.Amarrou as rédeas em um toco do lado esquerdo, junto ao morro. - Josh - chamou Wesley. - Você trouxe a lanterna? - Claro doutor.O cocheiro pegou a lanterna embaixo do banco. Era uma caixa de vidro, com moldura de ferro. O médico, com dificuldade, conseguiu acender a mecha e tapar a lanterna de novo, antes que o vento a apagasse.Sem alguma luz, jamais conseguiria encontrar a carruagem caída.A luz amarelada, fraquinha, iluminava apenas um círculo de dezmetros de diâmetro. O suficiente para que os dois homens percebessem na lama as marcas fundas de roda que perdiam a curva e dirigiam-se para o despenhadeiro. - Lá embaixo, moço, veja!Wesley debruçou-se na margem da estrada estendendo o braço com a lanterna pesada.A chuva continuava forte, dificultando ainda mais a visão do despenhadeiro. - Ali! Veja, doutor! Na direção para onde apontava o cocheiro, ele percebeu uma mancha clara no maio das moitas que cobriam o despenhadeiro.Voltou-se para a menina: - Pronto querida. Agora volte para dentro da carruagem e proteja-seda chuva. Eu e meu cocheiro vamos descer até lá. - Não moço. Eu vou junto! - Menina, você... - Vou junto!A determinação da garotinha calou o médico. Suspirou e desistiu de discutir. Se ainda houvesse alguém vivo lá embaixo, não havia tempo a perder. - Está bem. Segure-se no meu pescoço.A menina enlaçou-se às costas dele, envolvendo sua cintura com as perninhas e agarrando-se firmemente na frente de seu colete. Não pesava quase nada, e o médico começou a descer a encosta, firmando-se onde podia com uma das mãos e segurando a lanterna com a outra.Logo após, o cocheiro seguiu os dois.Chegaram à mancha clara que haviam visto de cima. - Menina, não olhe! - ordenou o médico.A mancha era o corpo de um homem. Caído de bruços.Wes tocou o pescoço do homem com a ponta dos dedos. Nenhuma palpitação. Aquele devia ser o cocheiro da carruagem acidentada.E estava morto. - Moço, pra baixo, moço. Mamãe está lá!Continuaram a descida, com grande dificuldade.

A carruagem estava lá, enganchada em uma árvore que a salvara dedespencar-se ainda mais. - Vamos, moço!Mais uma morte encontrada. Era o cavalo, caído no meio do mato eainda preso pelos arreios à carruagem destroçada. - Vamos, depressa, moço!A menina empurrava-o com o corpinho, como um cavaleiro a animar a montaria.O médico tropeçou. - Droga!A menina saltou-lhe das costas e tomou a dianteira. - Venha, venha!O cocheiro chegou junto a eles e Wes pediu: - Segure a lanterna, Josh. Fique junto de mim. Tenho que ver o que há lá dentro.Com a luz às costas, ele conseguiu olhar para dentro dos destroços. Nesse instante, ouviu um gemido. - Tem alguém vivo, Josh! Tem alguém vivo!Forçou-se para dentro da cabine da carruagem e tocou a pessoa que havia gemido. Era uma jovem mulher.Usando o que podia da luz frouxa da lanterna, Wesley examinou rapidamente a pobre mulher. Estava fraca mas não parecia ter nenhum ferimento fatal. - Está viva, menina! Sua mãe está viva! - gritou o médico. - Venha, Josh. Ela não parece muito pesada. Acho que dá para a gente carregá-la para cima.Debruçou-se sobre a mulher, tentando apoiar sua nuca para erguê-la. Nesse momento, as costas de sua mão tocaram em alguma coisa gelada. - Josh, ilumine melhor aqui.Antes que o braço do cocheiro avançasse por cima de seu ombro,iluminando um pouco melhor o interior da carruagem, as mãos experientesde Wes já lhe tinham mostrado que o que ele apalpava era um cadáver. - Meu Deus!Foi desesperado o grito que o doutor soltou no momento em que a luz da lanterna iluminou o rosto do corpo que a mulher ferida abraçava. Era a menina! Morta ao lado da mãe!Sentindo-se enlouquecer, Wesley tomou a lanterna das mãos de Josh e procurou em volta de toda a cena do desastre.A menina tinha desaparecido...
As lágrimas jorravam de seus olhos e faziam-no tremer por inteiro. - O que houve, doutor? - perguntou o cocheiro preocupado. Wesley nem se lembrava como ele e o cocheiro tinha conseguido subir, carregando a mulher ferida até em cima.Colocou-a delicadamente na carruagem, apoiando-lhe a cabeça, e acarruagem retomou a marcha.Sim. Havia tempo para chegar à estalagem. Havia tempo para salvar a vida daquela mulher. Nesse momento, sentiu na face a pressão quente, úmida, de um beijo.De um beijo de menina.

It Has Called Darkness, My LoveWhere stories live. Discover now