Lucas estava desesperado.Saíra da penitenciária há três dias, depois de ter cumprido dez anos de condenação por assalto a mão armada, e não tinha o que comer nem paraonde ir. Sua mulher visitara-o durante o primeiro ano de condenação, quase todos os domingos. No segundo ano, as visitas foram rareando, até que amulher desapareceu por completo de sua vida.Ele cumprira o restante da pena sem qualquer sonho real que o esperasse no mundo fora da prisão.Agora que já o tinham devolvido àquele mundo, ele não trazia sonhos. Só o desespero.Procurou pela mulher no antigo endereço, mas ninguém sabia da existência dela. Nem da dele. Batiam a porta em sua cara ao verem aquela expressão barbuda, desesperada.As primeiras duas noites, dormiu embaixo de marquises de lojas, até ser expulso de uma por um cão furioso, a custo mantido na coleira pelo proprietário da loja, que não queria "vagabundos" por ali.O mundo fizera dele um vagabundo. O mundo fizera dele um infeliz.Com frio, na terceira noite dormiu fora da cidade, no meio do mato.Amanheceu molhado e com o estômago revolvendo-se de fome. Naquele momento, sentiu saudade até mesmo da bóia nojenta que lhe serviam na prisão.Pôs-se a andar, margeando a estrada de terra.À beira da estrada, um saco plástico de lixo.Talvez ali dentro houvesse alguma coisa para comer.Arrebentou o plástico negro e despejou todo o seu conteúdo. Nada. Apenas papéis sujos, latas e... uma faca.Uma faca! Por que alguém jogaria fora uma faca ? Lucas examinou-a cuidadosamente. Havia um dente grande na lâmina. Tornara-se inútil para a cozinheira. Mas, para ele, poderia ser um recomeço.Já não se sentia apenas um vagabundo. Era agora um vagabundo armado, o primeiro passo para voltar a ser o criminoso que sempre fora.O roncar do seu aparelho digestivo lembrou-o de que precisavacomeçar logo. Primeiro, arranjar o que comer. Depois...
Escondeu a faca por dentro da calça, cobrindo-a com a fralda da camisa e seguiu pela estrada, agora com pressa, em direção à cidade.Um carro vinha na mesma direção, por trás dele. Afastou-se e o carro passou por uma poça d'água, jogando barro molhado em suas calças, já imundas por três dias ao relento.Praguejou e seguiu em frente, arrancando forças da fome para apressar o passo.A estrada subia um pouco, em ladeira. No alto dela, Lucas viu o carro. O mesmo carro que passara por ele. Dessa vez parado.Ao lado do carro, uma mulher, com as mãos na cintura, olhava desolada para um pneu traseiro murcho, com a calota já tocando a terra.Lucas diminuiu o passo e desceu a ladeira.A mulher viu-o aproximar-se. - Bom dia, moço. Estou com um pneu furado. Será que o senhor podia dar uma mãozinha?Lucas passou a mão sobre o estômago. À frente da fome, estava afaca. - Sim, senhora...Procurou sorrir e deixar a mulher à vontade. - Pode abrir o porta-malas? Preciso do macaco... e das ferramentas...a mulher passava a mão esquerda pelo cabelo. Um anel brilhou à luzdo sol que nascia.Lucas parou na traseira do carro, esperando.Ela deu-lhe as costas e enfiou a chave na fechadura do porta-malas.Uma fração de segundos e a faca saiu da cintura de Lucas,espetando-se nas costas da mulher.Ouviu um gemido surdo e a mulher abriu os braços, tentando voltar-se para ele. A faca não tinha entrado bem. estava velha e o dente em sualâmina devia ter-se encravado em uma costela. Lucas passou o braço esquerdo em volta dos ombros da mulher e puxou-a com força para si,forçando a punhalada.Dessa vez, a faca entrou firme.O sangue jorrou em sua mão.A mulher amoleceu. Sua cabeça debruçou-se sobre o braço esquerdode Lucas.Ele deixou que o corpo escorregasse, até estender-se na terra comoum saco vazio.Sem perder tempo, Lucas abriu a porta do carro. Havia uma bolsa no banco do passageiro. Abriu-a. Um pouco de dinheiro. Não muito.Voltou até o corpo. Examinou-o, nenhuma jóia, além do anel nodedo anelar da mão esquerda. Talvez um anel de casamento. Um belo brilhante, cercado por uma série de outros, menores. Um lindo anel. Devia valer um dinheirão.Tentou puxar o anel."Diabo! Essa mulher deve ter engordado!"O anel não queria sair.Com a mão esquerda, Lucas segurou com firmeza os outros três dedos na palma da mão do cadáver. Com a direita, usou a faca como se fosse uma machadinha, tentando cortar o dedo de um só golpe.O osso resistiu. Com grande esforço, usou a faca como serra eesfregou a lâmina denteada contra o osso da falange. Não foi fácil, o instrumento não era o melhor mas, aos poucos, o osso foi sendo esmigalhado.Pegou o dedo com as duas mãos e partiu-o com um "tléc". Cortou orestante da pele e o anel caiu no chão.Jogou o dedo decepado no mato e enfiou o anel, ainda sangrento, no bolso da calça. Enterrou a camisa imunda de sangue no mato. A camiseta não estava manchada.Trocou o pneu, guardou as ferramentas no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. Ainda se lembrava como dirigir um carro. Enfiou achave no contato e deu a partida.***Uma nova vida começava para Lucas.O carro era quase novo e não tinha nenhuma mancha de sangue. Foi fácil vendê-lo para um receptador por um vigésimo do preço de tabela. O carro receberia uma boa maquiagem e seria revendido com enorme lucro.Lucas sempre odiara receptadores. Homens com negócios de fachada respeitável, que ficavam com a maior parte do ganho de tudo que ele, as duras penas e com risco de vida, conseguia roubar.Viu quando o receptador abriu o cofre. Deu para notar muitos maços de notas. O homem tirou apenas um deles e contou a quantia combinada.Lucas pegou o dinheiro e saiu, sem uma palavra.Já sabia qual ia ser o próximo passo.Com o dinheiro, comprou roupas novas. Arranjou um hotelzinho barato que aceitava hóspedes sem pedir documentos nem fazer perguntas. Num boteco, devorou duas porções de um almoço comercial que estavacom ótimo gosto. Dali para a frente, só comeria do bom e do melhor, prometeu para si mesmo.Pediu refrigerante. Tinha decidido mudar de vida completamente. Nada de cachaça. A bebida tinha sido sua ruína. À noite, voltou para a revendedora de carros, um galpão fechado, próprio para esconder as modificações que os carros "usados" recebiam,antes de serem vendidos em outros estados.O receptador estava sozinho no escritório.Com a faca a cutucar-lhe a garganta concordou em abrir o cofre.O punhal entrou com facilidade na garganta do homem, cortando acarótida, a jugular e os tendões. Quando o homem caiu, sua cabeça estava pendurada, como a de um frango capão.O dinheiro que havia no cofre era muito. E ninguém reclamaria da falta de uma quantia tão grande. Lucas roubara quem vivia de roubos.Junto ao dinheiro, havia uma pilha de documentos em branco.Aquele receptador sabia como "legalizar" qualquer coisa. Até mesmo um homem.Calmamente, Lucas enfiou um documento de identidade na máquinade escrever. Destruiu cinco, até conseguir terminar um deles, com o no meque escolheu. Depois, quando sua cara estivesse em melhores condições,tiraria uma foto e seria outra pessoa.Mudou-se para outro estado. Estava decidido a recomeçar seguindo o caminho de sua segunda vítima.Ladrões baratos como ele fora, há em todos os lugares. E todos aceitam qualquer preço que alguém ofereça pelo produto de seus roubos.Lucas enriqueceu. Prosperou na vida sem ter de vender o anel. O anel dera-lhe sorte. Para ele, tornou-se um talismã. Um joalheiro alargou-oe ele o usava no dedo o tempo todo, sem se preocupar se alguém o achasse mais adequado a uma mulher.Agora, Lucas tinha um grupo de capangas, para os trabalhos sujos.Aos poucos, foi abrindo negócios legais, enriquecendo cada vez mais e podendo cumprir o que prometera a si mesmo: só comer do bom e do melhor, só viver do bom e do melhor.Com o passar dos anos, seus negócios legais foram se tornando mais lucrativos do que os ilegais e Lucas transformou-se em um homem respeitado na cidade que escolhera para recomeçar a vida.Engordou um pouco, envelheceu, seus cabelos embranqueceram,mas, pelo jeito, o que as mulheres procuravam nele não era a beleza nem a juventude. Possuía a mulher que escolhesse, quando bem quisesse, mas jamais pensou em casar-se. Jurara para si mesmo nunca mais dar a uma mulher a oportunidade de abandoná-lo em uma cadeia, como a sua fizera.Mas, uma noite, participando de um jantar na casa do governador,como convidado de muita honra, Lucas conheceu uma mulher capaz defazê-lo esquecer-se da promessa.Era linda... Ah, que beleza de jovem, muitos anos mais moça do que ele. Conversava com ele no enorme salão do palácio do governador, com uma taça de champanhe na mão enluvada em seda, rindo com aquele frescor que só as mulheres que sabem que são belas são capazes.E, pela primeira vez em muitos anos, Lucas encontrava uma mulher que não parecia interessada no dinheiro dele: ao recusar-se a trocar de parceiro de conversa com todos os outros cavalheiros que dela se aproximavam, ela parecia também estar interessada nele, na pessoa dele,como ele se sentia fortemente atraído por ela.Enfeitiçou-se. Perdeu a cabeça.A moça concordou em ser levada para casa por ele.Lucas dispensou o motorista e sentiu uma lufada de perfume de jasmim invadir o carro quando ela entrou.Delicadamente, a mão dela pousou em sua coxa direita, enquanto conversava.Estava excitado de mais. Queria possuí-la, queria que ela se casasse com ele. Ah, sua vida poderia ser agora perfeita! Rico, realizado, respeitado e com a mais linda esposa do mundo!Se ele conhecia as mulheres, aquela beleza também parecia excitada.Tudo corria como no melhor dos mundos...Era madrugada já. Dirigiu devagar até uma alameda escura, de um bairro rico, cercada por árvores frondosas que tornavam romântica ailuminação pública.Parou o carro e desligou a ignição.Mal iluminado, o rosto da jovem era uma pintura rara a sorrir para ele.Tocou o seu rosto com a mão enluvada e ele enrubesceu.Lucas passou o braço esquerdo em torno dos ombros da jovem eacariciou-lhe a nuca esguia procurando trazê-la para um beijo.A jovem sorriu lindo e começou a descalçar a luva da mão esquerda,dedo por dedo, com delicadeza.E ergueu a mão para ele, para uma nova carícia.Foi aí que ele viu a mão branca como marfim, bem perto de seu rosto.Só deu tempo de perceber que faltava o dedo anelar...***
No dia seguinte, a imprensa noticiava com estardalhaço o encontrodo cadáver do conhecido comerciante, abandonado dentro de seu próprio carro.Os jornais mais sensacionalistas publicaram a foto do cadáver na primeira página. Os olhos esbugalhados, numa expressão de pavor. Numa foto menor, um jornal destacara a mão do cadáver, com o anular decepado...
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It Has Called Darkness, My Love
FanfictionO que fazer quando uma viagem entre amigos se torna um pesadelo ? Isso mesmo, contar histórias de terror.