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Já fazia uma semana desde que o frio tomou conta da cidade grande, neve e mais neve acumulava-se sob o céu fosco. Mesmo o frio intenso abaixo de zero não impedia os vários turistas de conhecer a cidade e os comerciantes de ganhar o seu pão de cada dia, o som das buzinas irrompia por entre as vielas escuras, o vento congelava até mesmo a alma da pessoa mais bem preparada que com vários casacos resolvera enfrentar o clima gélido. As ruas estavam completamente lotadas de pessoas que com suas múltiplas sacolas de compras se esgueiravam pelas frestas da multidão, afinal era época das compras, o consumismo exacerbado aumentava ainda mais no fim do ano. Fazer o que? Vivemos num mundo onde sua cultura baseia-se no consumismo, todas aquelas datas comemorativas somente para fazer com que compremos cada vez mais e no fim não teríamos nada além de vales e mais vales preenchidos com coisas inúteis que podem até mesmo ainda funcionar, mas não as queremos por acharmos que são "ultrapassadas".

Enquanto todos estavam empolgados preparando-se para a grande ceia, comprando imensas pilhas de presentes e preparando verdadeiros banquetes, eu simplesmente me encontrava na frente do notebook clicando em coisas aleatórias pela internet, não aguentava mais todos os programas televisivos sobre o natal, fim de ano e coisas do tipo. Para aqueles que possuíam família era a melhor época do ano, todos reuniam-se para cear, relembrar histórias passadas parecia divertido até. Quanto a mim? Bom, pra começar éramos somente meu irmão e eu, ele estava sempre trabalhando e acabava esquecendo o natal, era assim desde que nossos pais morreram. Quase nunca estava em casa e quando estava, se trancava em seu escritório. Não posso culpá-lo, afinal desde a tragédia fora ele quem tomou a frente os negócios da família e consequentemente cuidava de mim, se a palavra "cuidar" quer dizer pagar as contas, era somente isso que ele fazia, ele deve achar que somente dinheiro me basta, mas que hipócrita.
A campainha tocou tirando-me dos devaneios, quem seria a essa hora? Eram quase onze da manhã e eu estava em casa sozinha. Ao abrir a porta havia uma figura pálida e embora parecesse ser magro, havia um casaco enorme e grosso coberto por flocos de neve sobre um homem sério.

- Será que posso entrar, ou quer que eu vire uma estátua de gelo aqui fora mesmo? - Falou uma voz familiar.

- Nossa John, pensei que fosse o homem das neves. - Brinquei.

- Será que o homem das neves sabe cozinhar também Luci? - Rebateu John sorrindo.

John era um velho amigo da família, que mesmo com seus trinta e poucos anos aparentava ser mais jovem, tinha 1,83 metro, olhos cor de ébano e pele negra. Segundo meu irmão contara uma vez, John era capaz de derrubar um touro pelos chifres com as mãos nuas, é claro que nunca acreditei nessa história, eles haviam se conhecido na faculdade e desde então nunca mais se afastaram. Enquanto Lian continuou numa grande empresa o John pediu as contas simplesmente porque acabou por descobrir que não era exatamente aquilo que queria, abriu um restaurante há alguns anos que hoje tornou-se um típico restaurante cinco estrelas, diga-se de passagem.

-Lú, você está bem?- Perguntou John apreensivo.

- Hã?! Estou sim, estava apenas pensando no que você me trouxe desta vez. - Respondi já com água na boca.

- Não sei se vai gostar dessa vez, mas eu não passei pelo restaurante. Trouxe apenas algumas pizzas que fiz e congelei. Serve? - Sorriu sem graça.

Ele não veio do restaurante?! Deve ter acontecido alguma coisa. John sempre fala que não confia no chef, que tem que estar todos os dias para que seus empregados saibam que alguém os vigia. Lembrando constantemente de fazerem tudo certo, caso contrário vão pra rua sem meias palavras.

- John há alguma coisa errada?

Ele franziu a testa e desviou o olhar que antes estavam fixos em mim. Parecia preocupado.

- Não, está tudo na mais perfeita ordem. Só achei que estaria com fome, se quiser vou embora. - Respondeu John com cara de quem carregava uma tonelada sobre os ombros.

Ele mudou de assunto, tão óbvio isso. Agora sei que alguma coisa aconteceu, pra ele agir dessa forma, mas tudo bem se não quer falar ficarei quieta também.

- Me dá essa pizza aqui. - Falei pegando rapidamente a sacola de suas mãos. - Vou esquentar, estou morrendo de fome.

- Não vai esperar o Lian?

- Ele não deve vir hoje novamente. Está ocupado demais naquela importante empresa. - Respondi em tom sarcástico.

John abaixou os olhos, vi uma leve tristeza em seu olhar.

- Ei John, está tudo bem. Eu já acostumei e além do mais eu tenho você. - Pisquei.

Havia alguma coisa me incomodando, como se algo ruim fosse acontecer. Cala frios frequentes era, com toda certeza sinal de tragédia. Da última vez que senti isso o ginásio da escola pegou fogo, mas pode ser nada também, afinal eu já tive esse sentimento muitas vezes. Era desconfortável, embora não houvesse nada que eu pudesse fazer. O celular de John tocou, ele é tão desleixado que nem alterou o toque.

- Alô! - Disse John afastando-se da cozinha.

Ouvi apenas uns murmúrios abafados enquanto esquentava o almoço, deve ser algo relacionado ao trabalho.
John congelou em pé ao lado da escada, agora falava com sussurros, desligou a ligação rapidamente e enfiou o celular no bolso direito da calça.

- Luci, temos que ir!
John andou rápidamente em minha direção, ele estava pálido e suando, sua aura tranquila havia desaparecido por completo.

- É sério Luci, vamos encontrar com seu irmão agora.- Falou seriamente

- O que aconteceu John? Eu estou morrendo de fome, a pizza está quase pronta. - Ignorei

- Não dá tempo, venha. - Segurou meu braço e praticamente fui arrastada pra fora de casa.

O céu estava escuro, mais do que o habitual, John encarou o céu negro e sussurrou para si mesmo, como se fosse um alerta, um lembrete.

- Isso não é nada bom.

- Ei, o que está acontecendo?

O céu nebuloso clareava com os trovões, eu nunca havia visto aquilo. Tinha parado de nevar, o dia fora tomado por um carpete de nuvens negras que volta e meia reluziam com os trovões. Era realmente possível?

Entramos em silêncio no carro, John estava tão tenso que seu corpo nem se movia juntamente com o carro ao passar rapidamente pelos quebra molas no caminho. Conforme o carro encarava as ruas escorregadias meu estômago doía, não sei se pela fome ou por meu coração acelerar a cada derrapagem, o carro não diminuía a velocidade, espero que esses cintos suportem o baque, porque eventualmente vamos bater em algo.

Chegamos na empresa do Lian em pouco menos de 20 minutos, a viagem seguira num silêncio perturbador, John respirava pesado, sua musculatura estava rígida e seus olhos arregalados. Estava apavorado, seja lá o que ouvira no telefone, era sério.

- Ve-nha. Rá-pido Lú. - Gaguejou em meio a passos largos.

Seu rosto estava pálido, eu apenas assenti com a cabeça enquanto tentava acompanhá-lo a cada passada. Na frente do prédio todo envidraçado havia uma enorme placa: "Heartway". Entramos por uma porta dupla de vidro, a atendente de uma das bancadas nos acompanhou, ela era morena com o cabelo castanho escuro, de estatura mediana cerca de 1,62, vestindo roupas executivas, uma camiseta bege por baixo de um blazer azul marinho terminando por uma saia no mesmo tom do blazer e um salto alto preto.

- Desejam ver o senhor Lian? - Perguntou num grande sorriso.

John aumentou a velocidade de suas pernas enquanto a ignorava. Eu olhei pra trás e a moça estava parada olhando para nós, enquanto nos afastávamos. Paramos em frente à grande porta de aço, John apertou o botão do elevador, ele ainda estava silencioso e estranho, embora estivesse mais calmo.

Entre Dimensões: GrimoireOnde histórias criam vida. Descubra agora