Estava escuro. Frio. Senti meu corpo tremer. Vi uma luz distante que me atraiu como a uma borboleta, corri em sua direção, um vento frio fez com que meus olhos ardessem e senti minha pele queimar com seu toque. Meus pés descalços deslizavam sobre a grama molhada, o caminho parecia interminável quanto mais se corria mais parecia distante. No fim uma luz cegante atingiu meus olhos, fechei-os instantaneamente e abri aos poucos para que se acostumassem com a luz repentina. Tentei gritar, chamar "John!! John!!", mas a voz só existia em minha mente, meus ouvidos doíam com um zumbido intermitente.
- Olá Luci. - falou uma voz dócil.
Meus olhos ainda não estavam completamente acostumados com a presença da luz e pouco a pouco consegui discernir a imagem pálida a minha frente. Era uma mulher com um tom de pele branco, cabelo azul como o mar com um trançado para trás, onde finas mechas esverdeadas se sobressaíam, suas feições me eram familiar, de alguma forma. Trajava um longo vestido negro com um decote juvenil e longas mangas que atingiam até seus pulsos, seus olhos eram de um negro tão brilhante e profundo que me perdi em sua imensidão. Naquele momento percebi o que estava acontecendo. Era um sonho. Simples assim.
Diversas vezes sonhei com aquela paisagem: um campo com uma grama extremamente verde e bem aparada, algumas árvores frutíferas e arbustos floridos, terminando com uma cachoeira que com sua água límpida completava a paisagem calma. Me virei para a mulher ao mesmo tempo tão familiar e tão desconhecida que chamava por meu nome.- Você não deve lembrar de mim. Mas eu lembro de você. - continuou a doce voz. - Está com problemas de novo né? - sorriu. - Sempre que a vejo por aqui o motivo é esse. Você tem um belo refúgio pessoal devo admitir.
Eu estava confusa. Onde já tinha a visto antes?
- Então, o que houve dessa vez? - disse ela se dirigindo a um banco velho e gasto sob a grande macieira.
- Quem é você?- indaguei.
- A pergunta correta não é essa. Foi você quem me chamou. Deve ter um motivo.
- Eu quem te chamou? Nem te conheço moça.
O céu límpido escureceu, a cachoeira ficou negra, algo próximo de piche tomou o lugar da água, a grama secou e morreu, o solo foi tomado por enormes rachaduras. A mulher de olhos profundos, agora sentada no banco, permanecia imóvel me encarando.
- O que faz em meus sonhos? - gritei em meio aos trovões.
- Sonhos? - respondeu confusa. - Quem me dera isso fosse um sonho. Escute! Pelo visto não tenho muito tempo aqui, vou falar de uma vez. Sem rodeios. - Respirou profundamente e continuou: - Sua jornada te levará a um caminho sem volta, vim te aconselhar que pare com sua busca. Caso contrário eu serei obrigada a interferir e te garanto que não gostará do resultado. Afinal não desejo que minha criadora seja extinguida...
Sua imagem oscilou e tremeu, ficando cada vez mais transparente, perdendo a cor e mesclando-se com o ambiente em caos. Enormes pedaços de pedra começaram a cair do céu, eu corria para desviar, tentativas em vão, pois o chão abria-se com verdadeiros precipícios. Corri, saltei, desviei. Em direção ao nada, não sei se olhava para o céu, com grandes pedregulhos seguindo a força da gravidade ou para o chão que se abria a cada passada. Tropecei em uma das pedras que havia caído e despenquei fenda a baixo, o tempo começou a passar vagarosamente. Eu encarava o céu em colapso.
Senti uma mão balançar meu ombro e despertei bruscamente.
- Lú. Chegamos.
Era o John. Ele tinha olheiras profundas e um sorriso caloroso no rosto. Akim se espreguiçou e passou as mãos nos olhos.
- Bom dia. - disse Akim ainda sonolento.
O sol estava alto no céu, o toque calmo de seus raios ardia os olhos e aquecia nossos corpos. Olhei o relógio no mostrador do carro: 7:10, parece que dormimos demais, teríamos viajado por pelo menos umas nove horas, quão longa teria sido aquela estrada?
O carro ainda avançava pela entrada da cidade que fazia jus a seu nome, havia um extenso canteiro de flores com diversas cores que dividia ambas as duas pistas. Em frente as casas, jardins enormes despontavam em meio a cidade industrializada, ao longe, subindo as montanhas, se viam incontáveis fábricas a todo vapor que com a fumaça produzia um tipo de neblina densa ao seu redor. As ruas estavam movimentadas e lotadas. Nem parecia que horas antes estávamos fugindo de uma cidade apocalíptica, ali ninguém demonstrava medo ou preocupação, todos sorridentes. Era acolhedor.
- A maioria são turistas. - John apontou para a multidão.
- Eles parecem felizes. Será que só aconteceu onde estávamos? - Perguntei enquanto olhava para um casal desfrutando seu café da manhã numa cafeteria.
- Sim. É provável que tenha acontecido em poucas cidades.
- Será que a notícia já se espalhou?
- Naah, eu duvido. Deve ter sido abafado como sempre, o problema é se o clima lá continua o mesmo. - Vi uma leve tristeza em seu rosto, enquanto estávamos parados em meio ao trânsito turbulento.
- Vocês vão ficar de papinho aí ou vão parar logo esse carro. Estou com fome. - Akim interrompeu.
Hank levantou as orelhas e deu um latido como se concordasse com o dono.
- Estão vendo? Até o Hank concordou.
- Meu Deus! Você não mudou nada, só pensa em comer. - John brincou.
Passados 15 minutos nos livramos por fim do engarrafamento, deixando o tumulto para trás. Paramos em uma lanchonete no fim da rua, o cheiro do queijo na chapa quente invadiu meu olfato, meu estômago entendeu como um sinal e começou a roncar. Deixamos Hank sair, e colocamos uma tigela vermelha no chão ao lado do carro, em seguida enchendo ração até que derramasse. A lanchonete era bem pequena em comparação a quantidade de pessoas que se encontravam em seu interior. Um balcão de um lado a outro, três pessoas atrás fazendo mais de uma coisa ao mesmo tempo, uma mulher mal humorada no caixa gritando os pedidos dos clientes e várias pessoas transitando entre as mesas enquanto os poucos garçons desviavam do vai e vem equilibrando suas bandejas sem deixá-las tocar em qualquer que fosse seu obstáculo. Sentamos em uma mesa no canto, bem em frente à caixa fanfarrona.
John se levantou.
- Vou fazer os pedidos, o que querem?
- Pra mim um misto com um copo de suco já serve. - Decidi.
- Eu vou querer dois mistos, dois salgados daquele ali - apontou - que tem queijo e presunto dentro, uma esfirra e um copo de café. Sem leite. - Akim sorriu.
- Não vou lembrar de tudo isso. Vá fazer o pedido então seu folgado. Me traga apenas um pão com manteiga e um café. Com leite. - John franziu a testa.
Akim não falou nada, apenas se levantou e foi para o balcão. John sentou e deu um suspiro cansado. Permanecemos em silêncio enquanto a comida era preparada e trazida. Um garçom chegou desviando de uma turista com um grande chapéu florido e uma bolsa preta enorme, as xícaras oscilaram, o rapaz equilibrou a bandeja meticulosamente e sorriu:
- Essa foi por pouco.
Devolvi-lhe um sorriso cansado, enquanto ele nos servia rapidamente. O cheiro era familiar e enjoado, me lembrava o da cozinha de nossa antiga casa quando a mamãe cozinhava, uma mistura de café e queijo grelhado, me trouxe lembranças que quis esquecer, que afoguei no fundo da mente. A mamãe na cozinha preparando o café. Eu sentada no colo do Lian, enquanto o pai andava sem rumo gritando: "Amor, você viu minha camisa? Aquela azul que você comprou?" Todas as camisas dele era ela quem comprava. " Está no guarda roupa." Ela gritava de volta. Não completava nem 5 minutos e ele voltava: "E a gravata? Onde que você colocou?" "Dentro da gaveta na cômoda ao lado da cama." Ela sorria enquanto passava a manteiga no pão. Eu tinha 5 anos naquela época, mas lembrava como se tudo aquilo tivesse acontecido no dia anterior.
- Então, podemos ir? Vou pagar. - Disse John levantando-se.
Ele terminou de comer rápido. Akim ainda devorava a última esfirra, enquanto eu nem estava na metade do pão. Depois dessas lembranças, perdi o apetite. Voltamos ao carro e só então lembramos que o Hank havia vindo conosco, ele estava deitado ao lado da tigela de ração, que estava vazia.
Lian abriu a porta, entrou e sentando-se chamou:
- Venha garoto.
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Entre Dimensões: Grimoire
General FictionOs mundos entravam em colapso, ameaçavam libertar seres malignos selados no mais longínquo espaço-tempo. Após longos séculos o selo ameaçava romper. A maga cujo último feito conhecido fora reforça-lo, sumira entre as dimensões. "Avançamos em direçã...