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Laura

O mofo que sinto ao entrar em casa, me remete imediatamente aqueles quartos onde estive aprisionada na Somália. Acho que tudo me lembrará àquele lugar e os homens que me prenderam. Temo não voltar mais a ser quem eu era antes ou, talvez, tenha medo de voltar a ser exatamente aquela mulher cheia de sonhos irreais.

Havia me esquecido completamente que não tinha as chaves da minha própria casa. Tive que recorrer a família Kirby, um casal de vizinhos que mora ao lado, e que se surpreenderam com a minha súbita chegada, mas que prontamente me ajudaram. Conseguiram um profissional para trocar a fechadura. Tudo durou mais de uma hora até eu conseguir, finalmente, entrar na minha casa. A companhia de eletricidade só não cortou a luz, porque estava automaticamente sendo debitada na minha conta bancária. Tenho uma grande quantia que deixei parada no banco para emergências, já que meu pai havia me passado em vida tudo que pertencia a ele para evitar problemas e burocracia. Ele sabia o que estava prestes a acontecer e decidiu se precaver. Ele tinha razão.

Embora jamais mantive muita amizade com os meus vizinhos, confesso que me surpreendi positivamente com a preocupação e dedicação deles ao me ajudar, e a forma como sentiram a morte do meu pai. Segundo eles, viram reportagens sobre meu desaparecimento na Somália, mas as emissoras de TV, principalmente a ACB News, na qual já estava empregada há um ano, não se manifestaram muito sobre meu desaparecimento. Decepcionada não é bem a palavra que me descreve neste momento. Sinto raiva por ter abandonado tudo para perceber que no fim, fui apenas um mero brinquedo nas mãos destas pessoas. Dan Walker tinha razão. Foi um sonho imbecil. Entreguei-me a um trabalho que não tive o mínimo de ajuda quando mais precisei.

Ando pela sala onde meu pai costumava ficar na maior parte do tempo assistindo TV. A impressão que tenho é que a casa onde vivi durante todos esses anos, tornou-se menor, encolheu. Enxergo-a como se ela fizesse parte apenas do passado. No entanto, meu pai queria preservá-la e com ela, ficaram todas as lembranças. Hoje, tudo morreu junto com o meu pai e agora eu me sinto completamente sem rumo.

Os porta-retratos espalhados sobre o console e mesinhas onde ficam os dois abajures em cada lado do sofá marrom, estampam uma felicidade que existiu há muito tempo. Sorrisos de uma família feliz. Meu pai, minha mãe e eu, tão pequena, sobre os ombros fortes de um homem sorridente.

Éramos felizes até os meus dez anos, no dia em que um derrame tirou, de forma trágica, a vida da minha mãe. Depois disso, meu pai cuidou de mim até a adolescência quando surgiram problemas de saúde em um homem que havia se entregado a tristeza. Ele sempre tentou de tudo para transparecer uma fingida felicidade que havia desaparecido no mesmo instante em que minha mãe se foi. Meu pai não era a mesma pessoa, mesmo que ele afirmasse com veemência que estava feliz. Podia ver dentro de seus olhos a tristeza, principalmente quando estava doente. Em seus momentos de fraqueza dizia que o seu maior sonho era se encontrar com a minha mãe. Espero que eles estejam juntos agora.

Subo as escadas encarpetadas e caminho lentamente em direção ao meu quarto. O que vejo assim que abro a porta, são minhas roupas espalhadas sobre a cama; coisas  que separei para viagem, mas que desisti de levá-las de última hora porque sabia que não precisaria. Fui instruída a ir o mais simples possível para não chamar atenção, porém, nada disso adiantou. Fomos pegos saindo do hotel onde estávamos hospedados. Tudo aconteceu muito rápido e hoje eu poderia estar morta.

Ver as minhas roupas assim, me faz lembrar da empolgação e ansiedade que sentia em poder realizar um sonho que, para muitos, era maluco, mas para mim, uma realização. É como se o tempo tivesse parado, porém, ele não parou e meu pai não está mais aqui.

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