A cobra sente fome

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Campo XXXV; Quarta-feira (doze anos antes); 17h41

Kyungsoo continuou imóvel como uma estátua ao ver o salto de Rakharo transformar-se num giro de cento de oitenta graus no ar. O mais velho já exibia o sorriso da vitória no rosto, mas milímetros antes de seu pé acertar em cheio o pescoço do mais novo, Kyngsoo agarrou-lhe com as duas mãos, empurrando-o para trás, fazendo com que o irmão perdesse o equilíbrio por um breve instante.

Mas ele não caiu, Rakharo nunca caía de primeira.

O que era para ser um tombo, transformou-se num mortal de costas e o mais velho se pôs de pé, com uma expressão feroz no rosto. Rakharo soltou um rosnado e correu pra cima dele, pronto para atacar-lhe com um soco, mas o menor se defendeu com o antebraço, desviando de cada golpe enquanto recuava até conseguir distância o suficiente para conseguir pular e girar o quadril, acertando o peito de Rakharo com um forte chute, fazendo-o cair duramente no tatame.

O avô se levantou vagarosamente da cadeira, mostrando um sorriso satisfeito para o mais novo e um rude franzir de cenho para o mais velho que jazia ofegante em seu lugar, com aquela postura curvada e a cabeça arqueada, como se estivesse prestes a atacar novamente. O ancião o ignorou e voltou o olhar para o pequeno Kyngsoo que se mantinha com a postura rígida e a cabeça erguida.

Mas a expressão séria do pequeno se desfez num largo sorriso assim que o avô lhe estendeu a mão para dar-lhe uma bala de leite.

-Muito bem, Kyung. Está cada vez melhor. -O avô lhe afagou o ombro e o garotinho sorriu, assentindo feito um soldado.

-Ndiyabulela kuwe, utitshala. -Obrigado, mestre; Kyungsoo disse antes de juntar as mãos e inclinar a cabeça em agradecimento.

-Pode ir agora. -O pequeno assentiu novamente e se pôs a correr para a saída da sala, Rakharo abaixou a cabeça para segui-lo, mas antes que pudesse dar outro passo, o avô o fez parar segurando seu ombro.

-Ndiyazi, andilahlekwanga. -Eu sei que perdi; O garoto murmurou de má vontade e o ancião assentiu.

-Você sabe porque perdeu? -O avô indagou com as sobrancelhas severamente unidas e o menino não respondeu.-Inyoka kuhlaselo kuphela xa ejamelene.

-Uma cobra só ataca quando é ameaçada. -Rakharo repetiu as palavras bem como repetia todos os dias e o avô lhe deu um forte tapa nas costas para que ele ajeitasse a postura.

-Você não está aqui para se amostrar com o que sabe fazer, e sim aprender tudo aquilo que for capaz.

-Eu sei, mestre.

-Não parece que sabe. -O avô rebateu severamente.- Não é porque é o mais velho que vai ser o melhor.

-Mas deveria.

-A prepotência não ensina nada à ninguém. Você perder porque o seu único foco é ganhar.

-A cobra sente fome.

-Não, Rakharo, e esse é justamente o problema: quem está com fome é você e não a cobra.

-Eu sou a cobra.

-Não. Kyungsoo é a cobra, você é o menino. A sua cobra ainda dorme.

-Mas eu sou dois anos mais velho do que ele!

-Idade não define maturidade. -O ancião ralhou e o semblante do garoto se fechou rigidamente.- A idade é o efeito do tempo em você, a maturidade é o seu efeito no tempo. A idade diz quanto, a maturidade diz quem. Você ainda é só um menino, Rakharo.

-A cobra sente fome. -O garoto rosnou com raiva e o avô negou com a cabeça, lamentando silenciosamente.

-Em você, a cobra ainda dorme. Ela vai acordar com o tempo, com a maturidade... Seu irmão evoluiu precocemente, mas cada um tem o seu tempo. Idade não define maturidade, Rakharo, ser mais velho não te faz melhor do que aquele que é menor. A fome que tanto sente é inveja, é raiva, inferioridade porque o seu irmão mais novo acordou acordou a cobra e você não. Livrar-se desse sentimento é o primeiro para que possa amadureecer. O seu foco é ser melhor do que você já é, e não ser melhor que o outro. A cobra sente fome, mas não é com inveja que ela se alimenta.

As Galáxias de UranoOnde histórias criam vida. Descubra agora