Descobertas podem não ser seguras

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Campo XXIII; Quarta-feira (cinco anos antes); 10h14

-Você não vai aceitar esse emprego! -O homem gritou ao bater as duas mãos na mesa com força, fazendo com que a garota se encolhesse de olhos arregalados do outro lado da mesa.

Allyson abriu e fechou a boca diversas vezes querendo rebater com algo, mas acabou apenas soltando um arfo agudo de frustração e fechando a cara numa carranca. Toda vez que ela começava a falar do museu, era a mesma coisa, mas o dia havia finalmente chegado e ela não iria deixar seu pai estragar aquilo.

-Jerry, pensa bem... -A mãe intercedeu com a voz doce, acariciando a mão do marido que negou com a cabeça de forma irredutível.

-Eu já pensei e repensei um milhão de vezes, a resposta continua sendo não. -Ele disse de forma severa, voltando os olhos para a filha.- Eu vou ter que ficar explicando a cada cinco minutos? A resposta é não! Será que dá pra entender ou está difícil?

-Tá difícil, está muito difícil sim porque você está arruinando a minha vida inteira! -A garota gritou com os olhos cheios de lágrimas e o homem respirou fundo, socando a mesa mais uma vez.- Você sabe que esse sempre foi o meu sonho... Você sempre me priva de tudo!

-Allyson você acha mesmo que eu mantenho trancada dentro dessa casa por que eu quero? Você acha mesmo que te tirar da escola foi um capricho meu? Eles desconfiam de você, filha.

-Eles não tem nada pra desconfiar! -Ally rebateu com indignação.- Eu sou inteligente, ué! Qual é o problema com isso?

-Você sabe que isso não é só inteligência... -Jerry rosnou baixo e a garota negou com a cabeça.

-E o que mais seria?!

-Allyson, você... Você sabe do que eu estou falando, filha... -O homem afundou o rosto nas mãos antes de choramingar num sussurro.- Você é diferente...

-Eu não sou! Eu não... Eu não sou isso!

-Você sabe que é diferente. -Jerry negou com a cabeça.- Você sabe que isso não normal.

-Não tem nada de anormal comigo, eu só sou inteligente! -Ally murmurou nervosamente.- Eu leio, eu presto atenção, eu observo as coisas!

-Você colocou a mão no meu rádio novo e além de explicar detalhadamente o processo de fabricação e componentes dele, me disse como funcionava e estimou por quantas mãos ele havia passado antes de chegar na minha.

-Eu não estimei, eu disse com certeza.

-Allyson!

-Eu não tenho culpa se eu... Eu não tenho culpa se eu sei, eu simplesmente sei!

Ally sempre havia sido um prodígio no quesito inteligência, era a número um da turma, sempre tirava as melhores notas, era da turma de informática e mesmo tão nova era o destaque porque, de alguma forma, aquela garotinha sempre sabia como fazer tudo. Ela sempre gostou e ler, lia muito, lia demais e prestava ávida atenção em todas as suas aulas e era à isso que atribuía o seu conhecimento, mas no fundo, por mais que negasse com todas as forças, ela sabia que não era bem assim.

Allyson simplesmente sabia.

Bastava que tocasse algum objeto para que seu cérebro transbordasse em informações sobre ele, conseguia saber a composição, a função, cada mínimo detalhe de como funcionava, conseguia saber a história por trás daquele objeto e em que situação e para quê ele havia sido criado, conseguia saber quantas e quais pessoas já tocaram naquele objeto, ela conseguia saber qualquer coisa relacionada àquilo que tocava. Não era algo que ela conseguia controlar, ela sabia sem mesmo quando não queria saber, ela simplesmente sabia. E esse era o problema, ela não podia simplesmente saber, ninguém podia fazer isso, se ninguém podia ela também não podia porque ela não era diferente, ela não podia ser!

Algumas vezes eles falavam dos diferentes na escola, do quão horríveis eles eram e o mal que eles podiam fazer, do mal que eles podiam trazer para a sociedade. Ally não era assim, ela não era má, ela era normal como todo mundo, pelo menos era nessa certeza em que ela se agarrava firmemente. Porém, o seu saber peculiar com o passar do tempo foi chamando muita atenção, as pessoas observavam, as perguntas circulavam e Jerry -oficial do exército há mais de vinte anos- começou a perceber os olhares tortos e atentos em sua menina, portanto, não demorou muito em tirá-la da escola por um tempo, na esperança das pessoas esquecerem um pouco ou deixarem essa história de lado.

Depois de seis meses trancafiada em casa, Ally recebeu uma carta com o selo do próprio Presidente, um texto escrito a punho enaltecendo todo o desempenho que ela sempre mostrou ter na escola e um parágrafo um tanto quanto triste por suas férias adiantadas, porém, muito bem arrematado e educado ao dizer que o motivo de tal pausa era compreensível já que ela visivelmente estava adiantada em seus estudos. Na carta, o Presidente muito impressionado com tudo que ouvira falar sobre ela, a convidava para um teste e se ela passasse, poderia assumir a vaga como guia no Museu das Armas.

-Eles sabem que isso não é simplesmente saber, Allyson! -Jerry bradou num rosnado e foi a vez da garota socar a mesa.

-Se eu fosse mesmo isso aí que você acha que eu sou, se eu fosse... Se eu fosse... Isso. -Ally murmurou com certo nojo, sem conseguir de pronunciar a palavra mutante.- Eles já teriam me apreendido, já teriam me tirado daqui ou tacado fogo na nossa casa, não é isso que eles fazem? Você acha que o Presidente ia mandar cartinha pra... Pra um... Diferente? Eu não sou dessa raça!

-Eu estou tentando te proteger, você precisa colaborar comigo.

-Você precisa parar com essa paranoia de que eu sou um monstro como aqueles... Como aquelas coisas! Eu não sou! Você precisa aceitar que as vezes as pessoas são inteligentes demais, as vezes elas tem um dom e isso não é nada demais, isso normal, isso é bonito! O Presidente me mandou uma carta! Quer que eu esteja mais segura do que ao lado do Presidente dentro de um museu do exército? Estarei protegida até os dentes!

-Isso não tá me parecendo boa coisa, Allyson... -O homem passou as mãos no rosto numa tentativa de conter a agonia que sentia.- Eles não jogam pra perder! Será que você não pode prestar um pouco mais de atenção nas coisas? Se você olhar do meu ponto de vista, esse convite não te parece estranho?

-Nem um pouco! Estão reconhecendo o meu potencial, eu não vi nada de estranho nisso, na verdade, fiquei muito feliz!

-Se eles pegarem você, eu não vou conseguir ficar sem fazer nada, e você sabe o que acontece quando a família não cede...

-Eles não tem motivo pra me pegarem!

-Se você aceitasse a verdade, não se deixaria correr esse risco!

-Eu não estou correndo risco nenhum e não vou ficar aqui escutando você e a sua paranoia sobre ter uma filha mutante! -Ally gritou com toda a sua raiva e se levantou, subindo a escadas em passos pesados enquanto o pai afundava o rosto nas mãos sem saber o que fazer.

Jerry sentiu as leves mãos da mulher em seus ombros num carinho suave, um consolo mudo, mas o homem não foi capaz de agradecer como sempre fazia. Ele sabia que não tinha como prender a filha em casa para sempre, ele sabia que ela iria para aquele museu no entardecer do dia querendo ele ou não, mas o pior de tudo era que ele sabia o que estava planejado para acontecer lá, todavia sua pequena não acreditava nele.

-Ela iria de qualquer jeito, você sabe disso. -Patricia murmurou de forma a tentar conformar o marido, mas ele negou com a cabeça.

-Se ela vai, eu também vou.

-O que você vai fazer, Jerry? -Sua esposa perguntou preocupada ao vê-lo levantar um tanto quanto transtornado.

-Vou carregar a minha arma. Ninguém vai levar a minha filha sem que eu resista.

As Galáxias de UranoOnde histórias criam vida. Descubra agora