6h03.
Acordei com o "frio" por estar completamente destapado. Não sei a que horas é que adormeci, mas foi bem depois das 3h da madrugada.
Decidi que não valia a pena tentar dormir mais um pouco, pois daí a umas horas ia ser o evento que me estava a dar pesadelos. Com sorte, o André acordaria cedo por ele próprio, assim teria mais tempo para digerir toda esta situação.
Aproveitei o fresco da madrugada para ir correr. Sim, porque este verão estava um calor insuportável! Vesti-me e saí, tentando fazer o mínimo barulho possível no processo.
Digamos que em vez de espairecer a cabeça, pensei ainda mais no assunto.
Ao menos podia gritar o que me estava na cabeça preso há tanto tempo. Podem chamar-me o que quiserem... Mas falar para nós mesmos é das melhores terapias para qualquer situação.
Já tinha saudades desta terra, há imenso tempo que não vinha aqui. Mais precisamente, desde que ajudei o André com as primeiras mudanças. Normalmente, a mãe dele é que aparecia lá por casa dele, e nas poucas vezes que o André vinha visitar a mãe, eu não costumava ir, o que não é assim tão de estranhar quanto isso.
Bem, eventualmente voltei, e ainda estavam todos a dormir. Olhei para o relógio da cozinha - 8h13.
Uau, o tempo passou a correr... pensei que só tinha estado fora uma horinha. Fui tomar um banho, e quando desci, a mãe do André tinha mesmo acabado de tomar o pequeno-almoço, estava a ir para o jardim traseiro quando ela se voltou para trás, olhou para mim e disse "Bom dia" com uma expressão carregada, provavelmente por causa do que tinha de ser dito ao André.
"Ainda não lhe disseste, pois não?", perguntou a dona Rosa, melancolicamente.
"Não tive coragem, mas eu digo-lhe quando ele acordar", respondi calmamente, a mirar o chão até que olhei para ela, quando acabei.
"Vai correr tudo bem, vais ver" disse ela, com um meio sorriso. "Se precisares de ajuda com ele, diz" .
"Assim o farei, mas não se preocupe", respondi, também com o maior sorriso que a preocupação e a ansiedade me deixaram esboçar, apreciando genuinamente a força e a garra com que esta mulher estava a levar o problema. Senti-me completamente agradecido por ter alguém como a mãe do André para o apoiar desta maneira. E a mim também.
O tempo passou, e eu decidi arranjar-me apenas depois de avisar o André, para ele não começar a especular as coisas antes de serem ditas. Por isso, para passar o tempo, fui arrumando a cozinha e a sala, até lavei a casa de banho do rés do chão.
10h23.
Ouvi o ranger das escadas. Ele tinha-se levantado. Ai, o meu estômago revirou-se e contorceu-se, não eram só borboletas que lá estavam, era o jardim zoológico inteiro.
Deixei-o comer, para não o apanhar assim de surpresa em jejum.
10h47.
O André levantou-se e subiu, provavelmente para o quarto. Eu estava na sala a ver televisão desde que ele tinha descido. Passado alguns minutos, ganhei coragem e decidi subir.
Bati à porta.
" Entra", disse ele, num tom neutro.
"Então André, como estás?"
"Bem, acho"
"Como dormiste?"
"Demorei a adormecer... Mas o que dormi, foi bom, acho..."
"Hm, ok...". Era agora, tinha de ser agora. Não havia outra alternativa.
"Olha, André... Eu preciso de te dizer uma coisa...", comecei, tentando não parecer nervoso nem triste.
"... É que hoje é o funeral da Rita..."
Esperei por uma reação, mas só vi um olhar vazio, fixado no chão.
"Desculpa só te ter avisado hoje, mas estavas tão feliz ontem e eu..."
"Onde está o meu fato?", interrompeu ele, seco. Ríspido. Sem sentimentos.
"Está no meu quarto, já to trago"
Ele acenou secamente como resposta, com lágrimas a formarem-se nos olhos que ele não derramou. Pelo menos na minha presença.
Fui buscar o fato e pousei-o prontamente na cama dele. Quando saí e fechei a porta, ouvi um grito de raiva. Mas o que é que estava a acontecer? Porquê esta reação? Só podia esperar pelas 13h30. O funeral era às 14h, portanto tínhamos de sair meia hora antes, porque o enterro ía ser na cidade natal dela, que ficava mais ou menos a vinte minutos de carro.A cerimónia é uma mancha na minha memória. Só sei que houve muitas lágrimas, algumas silenciosas, incluíndo as do André, mas maior parte eram audíveis. Os únicos descursos que houve foram os dos pais dela, o meu, o da mãe do André e os de três ou quatro amigas dela. Mas, o discurso que todos esperavam não foi ouvido. O André não discursou, para o espanto de muita gente, mas não houve comentários.
Ele e eu fomos os últimos a abandonar a campa dela.
Quanto chegámos a casa, ele trancou-se no quarto. Tinha sido um longo, longo, longo dia. Um dia horrível para quem sofria de uma perda como a dele.
Bom, só bastava esperar até ao próximo dia e ver como corria...
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Chamadas às 3 da manhã...
RomanceSabes que algo não está certo quando te ligam ás três da manhã... Um grupo de três amigos de infância cresce, e o tempo traz ao de cima um romance escondido nas profundezas do mau feitio de Rita e da timidez de André, até que Bruno finalmente os con...