Era primeiro de Julho quando acordei com o despertador parecendo uma banda em meus ouvidos ao som de " The Colling" olhei pela pequena janela de meu quarto no segundo andar e percebi que caía uma chuva fina quase uma garoa completando o cenário característico do inverno, até gostava desse mundo cinza, frio e até preferia, pois combinava mais com minha personalidade e melancolia.
Depois de colocar o celular em modo soneca algumas vezes decido levantar e tomar um banho que por sinal não foi nada rápido, adorava sentir a água quente bater em meu corpo dando uma leve sensação de ardor por conta da alta temperatura da ducha e junto com a água fluía meus pensamentos...
Saí do banho enrolada em meu roupão favorito do Mickey que embora fosse velho e gasto e não era mais apropriado pra uma moça de dezesseis anos e sim para uma de doze ele me transmitia aconchego e carinho; parei em frente ao guarda roupa de madeira antiga com um unicórnio entalhado na porta feito pelo meu avô Joaquim que acreditava que eram seres mágicos por isso decidiu esculpir na porta quando nasci, após sua morte decidi manter o armário mesmo que fosse velho. Abri a porta e pensei em pegar um casaco de tricô caqui com botões em coco mas desisti afinal ele estava muito puído por conta do tempo, então coloquei uma blusa branca de manga 3/4 e um cardigã uva e por cima um echarpe cinza chumbo junto com uma calça jeans escuro e tênis. Prendi os cabelos em um alto rabo, passei a mão na mochila preta e desci as escadas rumo a cozinha para tomar o desjejum e me deparei com meus irmãos gêmeos Kay e Eloy de nove anos, duas pestes que deixavam muito marmanjo embaixo do chinelo quando o assunto era enganar para o bem próprio, eram duas pestinhas com carinha de anjo com seus cabelos encaracolados cor de mel, seus olhos grandes e verdes como esmeralda e bochechas rosadas, mas como disse não se deixe enganar com essas carinhas angelicais eram terríveis, se pareciam com o pai, um homem alto, gordo e branco que chega a ser vermelho, com sobrancelhas largas e queixo pequeno e que vivia de mal humor principalmente comigo que como ele mesmo me chamava "bastarda"; ele e minha mãe Ester se casaram assim que descobriu a gravidez dos gêmeos, ela o tinha conhecido num bar onde foi acompanhar uma amiga louca dela com o apelido de Tatu ( não me pergunte o porque pois nem mesmo minha mãe sabe)...Sai bruscamente dos meus pensamentos quando Eloy dá um puxão em meu cabelo fazendo inclinar a cabeça para o lado onde ele está, que no mesmo instante voltei dando um cascudo em sua cabeça quando meu celular toca; nesse instante meu coração acelera; pois estava escrito Charlie (meu pai), se é que se pode o chamar assim, sempre que liga é pra me dar más notícias, a última foi para dizer que iria se casar com uma moça que é apenas poucos anos mais velha que eu chamada Ana.
Ela é alta, com os cabelos cacheados no rumo da cintura cor de fogo com sardas em torno da bochecha contrastando com seus lábios sempre em um batom vermelho, e bem vestida nada a vê com ele, nunca entendi esse interesse no Charlie, pois ela é bonita, estudante de veterinária; já ele um homem de porte mediano, cabelo grisalho corte social, usa sempre calça jeans velha e camiseta surrada, usa sempre um boné jeans com um rasgo na aba pra completar o visual e claro suas coturnos.
Charlie trabalha em uma madeireira onde por muitos anos foi lenhador, e hoje apenas coordena o pessoal. Viajava muito procurando as madeiras mais nobres pelo mundo e vivia longe de casa, e claro numa dessas viagens conheceu uma tal de Cláudia, que manteve um rolo as escondidas até que ela engravidou e teve uma menina chamada Marina. Não podendo mais esconder ele resolveu abandonar eu e minha mãe pra ficar com sua nova família que não durou muito também. Hoje Cláudia e Marina moram na mesma cidade e estuda na mesma escola que a minha, apesar de nosso contato ser bem restrito e mesmo pouca diferença de idade não era o que pode dizer de próximas.
Marina tem quinze anos, é baixinha um pouquinho acima do peso, com cabelo e olhos castanho cortado chanel, usa sempre uma fita no cabelo que variava conforme sua roupa, sempre foi estudiosa mas calada, nunca interagiu com as pessoas e seus amigos era apenas um ou dois...ela gostava de coisas sobre astrologia, e vivia de fato no mundo da lua, agia sempre estranhamente e não ligava muito para a moda sempre era motivo de piada por onde passava. Não que eu fosse considerada a estrela da escola, pelo contrário, sempre fiquei do lado dos excluídos e sempre abracei isso com satisfação, pois preferia ficar com meus livros e músicas do que com um bando de adolescentes cheirando a feromônio e fazendo coisas inúteis. Gostava mesmo era de ficar sozinha, embalada a uma boa música sentada embaixo de uma árvore, ou no cemitério lendo ou escrevendo em meu diário; depois da morte do meu avô a quatro anos adotei essa mania mórbida de cemitério, não porque sou gótica ou faço parte de algum seita, mas porque ali podia ficar comigo mesma sendo quem realmente sou e o silêncio me faz sentir e observar melhor universo que está a minha volta...
Do outro lado da linha Charlie começa a me contar sua idéia de férias feliz com a família, onde entrava ele e a Ana como os falsos pais, eu e Marina filhas perfeitas. Descreveu tudo o que tinha planejado soltando então a segunda parte da má notícia se já não bastasse ter que aturar a ninfeta da noiva e a esquisita da meio irmã; disse que iriam para a casa de campo, se é que pode se chamar aquilo assim, pois parecia mais uma tapera no fim do mundo com um rio de águas turvas que deságua em uma represa. Após ouvir impacientemente dei de ombros como se ele pudesse ver minha expressão corporal e desligou o celular quando ouvi minha mãe chegando pela porta da sala com o "maurido", num impulso pulei da cadeira e corri pela porta da cozinha apenas ouvindo ela chamar meu nome, não estava disposta a ficar ali e aguentar sei lá o que eles iriam falar dessa vez.
-Mirian, Mirian não pode fugir de mim para sempre mocinha...
Então segui sem olhar para trás. No caminho para a escola resolvi passar pelo cemitério claro, como de costume. Ao entrar notei que estava havendo um sepultamento e fiquei a observar de longe. Estranhamente era composto somente por mulheres, sem homens nem crianças, sem choro,sem roupa preta apenas todas de vestido longo branco, cada um a seu modo, e cada uma delas com uma rosa vermelha na mão...fui me aproximando devagar para entender direito o que estava havendo e quando cheguei mais perto percebi que não havia um caixão e sim uma caixa prateada com algumas coisas escritas junto com alguns desenhos. Fiquei em cima de uma árvore onde o campo de visão era melhor e esperei até seu termino e quando elas saíram me aproximei da tal cova para saber o que escreveram na lápide ao ficar em frente evitando pisar em cima da terra molhada recém colocada tinha apenas iniciais com uma frase dizendo " Você não está sozinha, estamos sempre aqui a observar - Diana" de repente percorreu um frio na espinha e sentiu como se alguém estivesse a observar, então passei a mão nas minhas coisas e sai correndo rumo a escola.
Chegando no portão que estava fechado notei que fiquei tempo demais observando o enterro, mas o que fazer, pois pra casa não poderia voltar porque não queria ter que encarar o chato do seu "maudrasto" e a falação de Ester.
Andando pelas ruas esperando as horas passar pra voltar pra casa me dei conta que nunca tivera estado naquela lugar antes...tinha cheiro de jasmim e muitas árvores, os canteiros floridos e as casas limpas e pintadas todas da mesma cor, embora não fosse tempo das flores os jardins estavam bem cuidados e podados. fiquei admirando aquelas casas, pois pareciam quadros de um pintor que havia visto na escola com um nome estranho um tal de "Monet" ou algo assim, e enchiam os olhos de tanta beleza e organização.
Caminhei pelas calçadas muito bem limpa como um cenário de filmes que via pela TV, quando ouvi uma voz familiar vindo de uma das casas, abaixei e fui esgueirando para perto da janela e lentamente levantei e vi algo que me deixou surpresa.
Dentro da casa estava Ester discutindo com alguém; uma mulher branca de cabelos grisalho comprido, olhos negros de postura firme porém gentil, que vestia um longo vestido branco de algodão, pés descalços e uma pulseira prata com um pingente com a letra "M" em seu braço direito igual ao que havia ganhado quando criança, que por sinal sua irmã Marina também tinha de seu pai Charlie, na época fiquei brava porque tinha ganhado o mesmo que chata da minha irmã. Continuou a discussão entre elas e a única coisa que consegui ouvir porque Ester estava saindo pela porta foi a estranha mulher gritando:
" Não adianta relutar Ester, é inevitável e você sabe disso...Não pode recusar, elas tem o dom e está quase na hora...", então ela saiu batendo a porta.
Fiquei abaixada ali até que a barra estivesse limpa para ir embora. Andei lentamente pensando quem poderia ser aquela mulher e porque sua mãe estava lá e sobre o que elas estavam falando...
Chegando em casa, subi direto para o quarto, deitei na cama ouvindo The Beatles e peguei no sono. Sonhei comigo e Marina andando numa mata ao entardecer, no sonho nós duas estavam de branco e descalças, dava pra sentir o cheiro que vinha das árvores, uma mistura de pinho e carvalho e a sensação da terra úmida entre meus dedos juntamente com a grama completava minha conexão com Marina que estava de mão dadas comigo. Caminharam rumo a uma clareira onde estava aquela senhora de cabelos grisalhos com outras mulheres que estavam com ela no cemitério entoando algum tipo de cântico...acordei assustada com seus irmãos pulando em cima de sua cama, pois esquecera de trancar a porta e sempre que fazia isso eles aproveitam para atormentar e destruir minhas coisas.
Após expulsá-los do quarto fiquei com uma sensação estranha como se estivesse estado naquele lugar; fiquei horas em frente ao computador de bobeira, mas sempre vinha o sonho e a conversa de Ester, então tive vontade de ligar pra Marina e saber como está.
Marina estava na varanda de casa com seu telescópio observando um cometa, quando decidiu olhar a Lua que por sua vez estava aparecendo discretamente no céu com o chegar da noite. Sua mãe estava sempre trabalhando por isso ela passava muito tempo só, como todos os dias e deixando se perder naquele imenso universo de cores e formas começou a sentir a energia do por do sol envolvê-la por completo como se fosse um toque frio a percorrer seu corpo e adorava essa troca de energia que sempre sentia com a natureza. Nunca entendera essa ligação, mas a aceitava bem, até porque era normal pra ela, já que tinha isso desde criança; ás vezes conseguia observar a mudança de cores das pessoas, animais e plantas, como se tudo tivesse uma espécie de luz em volta de si que muda conforme seu estado. Distraída em seus pensamentos quase não percebeu seu telefone celular tocar e quando atende era Mirian:
-Oi Marina, tudo bem?
-Oi Mirian tudo, o que houve?
-Nada. Porque pergunta?
-Porque toda vez que me liga é pra me dá bronca por algo que acha que fiz ou minha mãe; ou ás vezes para ditar alguma regra sobre como devo ou não me comportar quando estamos em público...
Fiquei pensando um pouco e continuei:
-Nada disso, liguei apenas para saber como você está.
Marina, surpresa voltou a perguntar se estava bem...
Sorri e disse que sim, apenas tive um sonho com você e resolvi ligar.
-Sobre o que foi o sonho Mirian?
-Nada de mais, deixa pra lá. Amanhã nos falamos...preciso desligar. Boa noite!
Marina ficou pensando no telefonema de sua irmã e como a relação delas eram distantes, não por vontade dela, mas Mirian fazia questão de se manter longe e agora isso.
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Duas Faces
RandomEm uma cidade de mente pequena e pacata no século XXI Mirian e Marina vê suas vidas mudar drasticamente após descobrir que histórias para crianças sobre bruxas podem ser reais. Melhor que beleza é poder e ele sempre pede um preço. Basta saber qual c...