CAPÍTULO 2 -

21 0 0
                                    

Tudo pronto para a nossa viagem de férias, Marina chegou cedo com meu pai e Ana pra me buscar pro meu inferno pessoal. Era por volta das nove quando ouvi a buzina tocando e ele chamando meu nome, então cobri a cabeça com meu edredom e virei pra canto. Claro que não seria tão fácil assim me livrar, pois dias antes minha mãe havia feito minha mala e deixado tudo pronto para que fosse para o que ela chamara de " aventura em família"; muito conveniente a ela, porque assim ficaria uns dias sem se preocupar comigo e evitar as brigas com o meu "maudrastro".
Levantei devagar, tomei banho, enfiei um pedaço de bolo na boca e sai, com a cara de "maus amores" com óculos escuros e um boné. Chegando no carro vi todos empolgados, principalmente Marina que fez questão em me dizer isso nas próximas cinco horas.
A viagem foi bem difícil de suportar, repleta de canções e palmas fazendo parecer mais longe do que era afinal, minha sorte foi que tinha levado uma bateria reserva pro celular pra ir ouvindo música pelo caminho.
Chegando na casa de campo notei que havia sido reformada, na entrada tinha sido plantado várias árvores formando um caminho e ao final uma casa de madeira, nem acreditei que era o mesmo lugar, tudo muito bem cuidado.
Desci do carro, peguei minha mala e comecei a subir a escada que dava pra uma varanda com algumas redes penduradas, algo rústico, porém lindo e perfeito para aquele lugar. A casa exalava um cheiro de alfazema que crescia livremente em torno da propriedade e inspirava um belo visual em tom cintilante de azul.
Marina e eu dividimos o mesmo quarto. Fiquei com a cama ao lado da janela porque a bebê chorona tinha medo de aparecer algum bicho vindo da mata a noite.
Brinquei com a Marina e disse que parecia cenário de filme de terror, onde durante o dia uma casa normal e aconchegante, mas a noite um lugar propício a um massacre. Claro que ela tremeu de medo e dei muitas risadas com seu pavor.
Após o almoço fomos para o riacho...(isso o que eu lembrava que era), a trilha era coberta de samambaias e plantas rasteiras que continuava por um campo aberto e ao fim dava em um bosque. Como não precisava seguir aquele caminho já que nossa trilha bifurcava para uma ladeira que terminava em uma pedreira, mudamos nossa rota, mas na hora pensei que depois iria querer voltar ao bosque para explorá lo melhor.
Quando fomos nos aproximando o som da água começou a ficar mais nítida e o cheiro da água mais perceptível...sei que pode parecer loucura, por dizer que água tem cheiro, mas se pode percebê la pela umidade do ar.
Após passar por algumas árvores e galhos me deparei com um espetáculo que só poderia ter sido criado por um ser divino. Desci entre as pedras para apreciar mais de perto o véu de águas cristalinas que dançavam em meio a um paredão de pedras em tonalidade marrom com vermelho, na parte onde a queda tinha seu fim havia um imenso lago de água em tonalidade verde azulada e ao redor uma vegetação coberta de pés de lírios (pena que não era época deles) mas mesmo assim estava perfeito.
Marina naquele instante não perdeu tempo em expressar sua euforia e entrou na água junto com Ana e Charlie me deixando para trás, não que me importasse porque gostaria daquele momento a sós para admirar aquele lugar.
Sentei em um tronco de árvore caído na encosta do lago que havia ficado preso nas pedras, a água cobriu meus pés na altura dos tornozelos que me deu uma sensação de bem estar.
Após ficar ali por um tempo olhando a bagunça do pessoal, notei que próximo a Marina estava cintilando umas luzes que mudavam de cor conforme dançavam no ar, era algo lindo como gotas d'água reluzindo com os raios de sol, mas em cores e formas diferentes uma das outras. Naquele momento esfreguei meus olhos por achar que estava imaginando coisas, mas ficou cada vez mais nítido as imagens então me levantei para chamar a atenção deles quando ouvi um barulho de folhas se mexendo atrás de mim então me virei rapidamente para olhar. Havia uma espécie de homem pequeno abaixado atrás de um arbusto, mas não era propriamente um ser humano, pois tinha ás mãos com folhas em seus dedos e suas orelhas eram pontiagudas e um nariz largo, vestia uma roupa num tom verde musgo, as num estilo muito antiquado. Fiquei paralisada olhando pra ele com uma sensação de perplexidade e medo, do outro lado percebi que ele também estava do mesmo jeito; não sei ao certo se passaram segundos ou minutos que fiquei ali, mas não conseguia me mexer...só fui interrompida com Marina me chamando.Venha logo Mirian vai perder toda diversão, a água está uma delícia...
Me virei pra ela dizendo que estava indo e quando me virei novamente ele havia sumido.
O decorrer da tarde foi tranquilo, nos demos muito bem e Marina não era assim tão chata como pensei.
A volta pra casa foi rápida,pois já conhecíamos o caminho e ao passar próximo ao bosque tive a sensação novamente de precisar ir até lá. De repente Marina segurou no meu braço gentilmente e disse:
Vamos voltar, ele também me atrai...
Dei um sorriso sem graça pra ela, me perguntando como ela sabia que estava pensando no bosque.
Cheguei em casa e fui tomar um banho, que pra mim resolvia metade das minhas aflições, pois é no banho que coloco minha cabeça no lugar. Devo ter demorado uma década, apesar da água não ser tão quente como da minha casa, mas estava boa e a ducha forte fazendo meus músculos relaxarem com a massagem. Fiquei pensando no que vi (ou pensei ter visto), e o quanto tudo aquilo era impossível e acabei me convencendo que foi o sol excessivo do caminho porque afinal não sou acostumada a enfrentá lo assim.
Sai do banheiro com meu velho roupão de guerra e deitei na cama virada pra janela, coloquei meus fones de ouvidos e fiquei ali, apenas admirando a natureza quando vejo de relance Marina entrando e dizendo algo que não fiz questão de entender e ela foi pro banho. Devo ter adormecido uns quarenta minutos e só acordei porque ela se sentou nos pés da minha cama fazendo o colchão de mole balançar.
-Mirian...
-Mirian...você está dormindo?
-Não mais...e voltei pra janela.
- Você viu também não é? Aquilo na água.
Por um momento recordei de tudo. Então tive medo de responder e parecer louca como ela.
-Não. Não vi nada.
Como não? Então como sabe do que estou falando?
Fiquei por um momento calada, então Marina prosseguiu.
-As luzes estavam cantando...disseram que estavam felizes por nos ter de volta...O que isso significa?
Nada respondi.
Ela ficou ali parada esperando minha resposta, então desistiu e foi saindo...
-Tem algo acontecendo e você sabe disso. Esteja comigo ao menos uma vez...
Então Marina saiu.
Fiquei evitando pensar naquilo até adormecer novamente.
Acordei e ouvi um som que não era familiar, não na cidade. Acordei ao canto de um galo. Um galo? Nossa, acabou, estou realmente longe da civilização pensei. Cobri a cabeça com o edredom que nem sei como foi parar em cima de mim e voltei a dormir.
Dez horas, marcava no meu relógio, olhei em volta do quarto e Marina já havia levantado. Enrolei um pouco mais e me levantei.
Ana estava na cozinha com seus cabelos preso em um coque e um lenço, com macacão de jardinagem, bem diferente do que era acostumada a ver, mas no fundo achei que ela ficou bem mais bonita assim, consegui vê-la como uma moça e não como uma piriguete.
-Bom dia, Mirian.
-Bom dia Ana. Onde está todo mundo?
- Marina está deitada n grama em frente a casa recebendo uma vitamina sei lá do quê que vem do sol. Acho que foi isso que ela disse e seu pai está cortando lenha porque quer fazer uma fogueira a noite pra fazer um lual. Está super animado.
Olhei pela janela e lá estavam eles... Charles parecia que tinha renovado uns dez anos, estava de bermuda e camiseta, sem o boné que era algo inédito pra mim e não é que ele tinha cabelo bonito? Olhei mais pro lado e vi Marina deitada próxima a uma árvore de olhos fechados e com um sorriso de canto com as mãos levantadas como se estivesse dançando ou mexendo em algo. Comecei a sorri vendo ela ali tão confortável e sendo apenas ela.
-Não precisa ser durona sempre Mirian, vai lá...Seu pai vem trabalhando a anos para deixar aqui legal pra vocês...vai aproveitar com sua irmã. Disse Ana.
-Sabe Ana, você é legal...
Ela sorriu pra mim, então sai pela varanda.
Sentei na rede e fiquei observando todo o cenário e pensei: Que lindo, como passei tanto tempo sem vir aqui! Olhei para Marina e resolvi que iria dar uma chance pra nós, vou tentar passar um tempo com ela, afinal ela é minha irmã (fiquei surpresa com esse pensamento).
-Marina, o que está fazendo?
Deitada e de olhos fechados me respondeu:
-Estou recebendo vitamina D.
-E pra quê mexer as mãos?
-Estou movimentando o ar.
-Como assim? Não movimentamos o ar.
Ela abriu os olhos, então reparei que eles eram claros como o meu...nunca havia reparado e me disse:
-Claro que podemos. Deite aqui e te mostro. Você consegue.
Apesar de achar aquilo bobo resolvi fazer por ela, por nós. Deitei ao seu lado e comecei a levantar os braços me sentindo ridícula. Aos poucos minha timidez foi passando e relaxei, apenas deixei fluir aquele sol adentrando em minha pele, e uma leve sensação de passar o vento entre meus dedos.
-Marina, estou sentindo...como fez isso?
- Você fez, você pode tudo...acredito em você. Disse Marina.
Pensa que posso fazer essas coisa, mas não posso. Me levantei e sai andando rumo a casa nervosa e Marina veio atrás.
Senti meu corpo queimar inexplicavelmente, então comecei a discutir com ela...disse coisas ofensivas e despejei toda minha cólera em cima dela como fazia com todos a minha volta. Ela apenas sentou no chão e tapou os ouvidos e quanto mais ela fazia isso, mais alto eu gritava...
-Para! Paaaaaara! Ela gritou
Os eletrodomésticos ligaram todos ao mesmo tempo, então parei de falar apavorada com aquilo. Fiquei observando pasma aquela cena, ela com a mão nos ouvidos sentada no chão balançando o corpo de um lado para o outro e tudo que era elétrico funcionando sozinhos...Então tudo ficou escuro.
Acordei em meu quarto, com Ana medindo minha febre e um copo com água. Minha cabeça estava explodindo e meu corpo todo doendo. Num solavanco perguntei cadê a Marina e ela disse que estava no outro quarto descansando. Quis ir vê-la, mas Ana disse que era melhor descansar também porque havia desmaiado e batido com a cabeça. Mas não me lembrava disso....
Após a saída de Ana fiquei esperando um pouco e fui até o outro quarto ver como minha irmã estava. Cheguei na porta e coloquei o rosto no portal com o corpo do lado de fora, pois não sabia o que ela poderia fazer dessa vez. Ela estava deitada encolhida na cama, mas notei que não estava dormindo.
-Marina! Você está bem? Minha voz saiu rouca de tão baixo que disse. Ela se virou pro meu lado e olhou para o outro lado de novo.
Me aproximei com cuidado (com medo na verdade), sentei na beirada da cama e toquei nela.
- Marina...me desculpa, não quis dizer aquelas coisas. Não tive a intenção. Fiquei ali de cabeça baixa, mas preparada a correr a qualquer instante, vai que ela surta e faz o ventilador cair na minha cabeça dessa vez. Então comecei a falar:
- Não sei se vai acreditar no que vou te contar, mas ontem vi umas luzes se mexendo em torno de você e conforme se mexiam elas mudavam de cor...ia te contar, mas tive medo de que não acreditasse em mim, ou me achasse louca, como...
-Como eu? Disse Marina com uma voz ríspida.
-Não. Como nossa bisavó... Minha mãe sempre me disse que ela era uma louca, começou vendo coisas, depois achava que era bruxa e que tinha poderes e fazia previsões das coisas antes dela acontecer. Acabou num manicômio até o fim de seus dias. Um dia ela sumiu e ninguém mais soube dela ou como ela conseguiu escapar.
- Me diz, como fez aquilo com os eletrodomésticos?
Marina se virou e disse:
- Mirian não fui eu...foi você!
Da onde tirou essa idéia absurda, como faria tal coisa, você começou a beber agora, foi?
-Para com isso Mirian, o que foi que eu te fiz, você só sabe me tratar mal, tudo que faço é pra tentar fazer dar certo entre nós duas e por outro lado, só me maltrata...
Desculpa, me desculpa, não foi minha intenção. Mas deve haver alguma explicação racional pra tudo isso. Faz assim, chama o Charles e vamos pedir a opinião dele, com certeza ele terá uma explicação racional pra isso.
Charlie demorou um pouco antes de chegar no quarto e enquanto se passou minutos, na minha cabeça se passaram horas. Ele sorriu gentilmente pra mim e sentou-se nos pés da cama, enquanto Marina sentou no outro lado da cabeceira comigo. Ele ficou ali parado, olhando nós duas sem dizer uma palavra, apenas com um leve sorriso no canto da boca, então comecei a falar. Contei todo o ocorrido e ele parado apenas ouvindo. Então ele começou.
-Antes de tudo, quero assegurar a vocês que nenhuma das duas estão loucas e primeiro vou contar uma história que aconteceu a muitos e muitos anos atrás...
Ah não, história de dormir? Não acha que somos grandinhas pra isso não?
_Xiiii....fica quieta Mirian, deixa o pai contar. Que chata!
Em uma pequena vila vivia um rapaz chamado Maykon. Filho de lenhador seguia o mesmo ofício de sua família.
Certo dia saiu em busca de boas madeiras e resolveu procurar em um local oposto do que estava acostumado a ir,começou a passar por imensas árvores, mas nenhuma delas ainda era sua escolhida, sempre achava que podia mais, então se deparou com uma fenda em um rochedo que descia em uma clareira, então Maykon entrou e conforme foi indo resolveu marcar a saída com seu canivete fazendo uma seta em sentido a saída e assim foi marcando todo o caminho. Ao longe percebeu uma claridade e voz, se aproximou sorrateiramente quando percebeu que havia uma fogueira e próximo dela uma jaula bem grande e um ser dentro que jamais viu que fazia sons que chegava a dar medo até nos mais valente dos homens. Se aproximou mais um pouco para poder ver nitidamente o que estava acontecendo, quando viu a criatura com mais detalhes...devia ter uns dois metros de altura, magro, com asas de pássaro e no lugar de sua pele, parecia casca de árvore com se fosse uma camuflagem por todo seu corpo, possuía uma longa calda fina, braços e pernas compridas e olhos grandes negros como a noite, Maykon estava fascinado e ao mesmo tempo apavorado com a criatura, quando ouviu uma voz gritando e falando umas palavras estranhas que ele não entendia. Se escondeu atrás de uma pedra e ficou ali abaixado, esperando uma brecha para poder ir embora. Passaram-se horas e ele ali, quando ouviu a pessoa indo embora. Se levantou, tirou a poeira de sua roupa e foi caminhando para a saída também, quando ouviu um choro. Olhou para trás e dentro da jaula havia apenas uma moça deitada nua, chorando apenas com seus longos cabelos cobrindo seu corpo. Intrigado ele voltou e se aproximou lentamente dela e viu que estava machucada e com frio. Num impulso ele tirou o canivete do bolso e arrombou o cadeado e soltou a moça.
Diz a lenda, que ele acabou se apaixonando por ela e se casaram, mas de tempo em tempo ela assumia sua forma original e vagava entre os vales, mas sempre voltava pra casa. Vindo desse amor, nasceu uma criança, seu nome era Diana.
Naquele instante meu coração acelerou, por tamanhas coincidências, como pode um nome perseguir alguém desse jeito? Então Charles não reparando no meu desconserto continuou.
Um dia a mãe de Diana voltou a ser capturada e nunca mais foi vista. Seu pai, saiu vagando atrás de sua amada e encontrou a morte nas mãos de golpistas. Diana por sua vez se viu sozinha, com dons que ela mesma não sabia controlar e muito menos entender. Após anos vivendo escondida resolveu que era hora de ir atrás de sua mãe e saiu em sua busca pelo mundo. Em meio a um bosque enfim encontrou o cativeiro onde Belquior (um antigo feiticeiro) havia mantido sua mãe aprisionada e no local estava uma senhora enferma acamada em um casebre próximo. Foi entrando e questionando a pobre senhora sobre Belquior e descobriu que ela era a mãe dele, no momento de fúria ela pega o travesseiro e a asfixia e deixa um bilhete em cima da cama junto ao corpo.
" Você um dia tirou a pessoa que mais amava, hoje eu tirei a sua..." Diana.
Ao retornar para sua casa, Belquior encontra a porta aberta, e sua mãe estirada na cama com os olhos abertos e um bilhete em cima. Transtornado ele sai correndo pelo bosque gritando o nome de sua mais nova inimiga sem nenhuma resposta. Então entra em seu covil e começa a criar uma maldição em para Diana:
"Permanecerás viva para presenciar a destruição de todos que carregarem teu sangue e só descansará quando toda sua espécie chegar ao fim, restando apenas a ti para sofrer e chorar cada uma das perdas..."
No momento em que o feitiço foi lançado ao universo o próprio respondeu com um raio a cortar o céu.
Diana, ouviu um grito estridente em seus ouvidos e imediatamente sentiu a energia maligna percorrer seu ser, entrelaçando com seus próprios poderes. Em uma lua Minguante Diana tentou desfazer o mal com um encantamento:
"Lua poderosa, que cresce e míngua,
Desfaça todo mal lançado em mim.
Quem sou eu para devolver?
Deixo nas mãos dos Antigos
Intercedam por mim nessa hora.
Pelo poder do 3 vezes 3
Que assim seja e assim se faça..."
Mas continuou sentindo cada vez mais ligada ao mal que estava habitando ela.
Então criou um amuleto de proteção inutilizando os efeitos em todos que tinham seu sangue. Somente poderia ser dado de geração pra geração.
Após o término da história de Charles resolvi ir para a varanda tirar um momento a sós e refletir sobre o que estava acontecendo com essa família, que apesar de nunca ter sido normal, agora estavam todos a beira de um hospício inclusive eu. Deitada na rede do lado de fora comecei a relaxar um pouco com o vento soprando e balançando levemente as árvores e com elas meus cabelos fazendo cócegas em meu roto, então prendi em um coque justo e deitei novamente.
Fiquei ali observando as folhas das árvores balançando e os fachos de luz saindo sinuosamente entre elas. Peguei no sono em questão de minutos sem perceber... Sonhei que estava na gruta da história, e revi todo o acontecido de um ângulo que jamais veria, vi como se fosse o senhor que entoava o cântico. Dava para sentir a amargura e toda a dor daquele homem que parecia sofrer juntamente com o demônio mais por alguma razão persistia na intenção do fim daquele ser. Acordei com minha irmã me chamando.
Terminado aquele dia, os seguintes correram como se nada tivesse mudado, a cada dia a relação com minha irmã melhorava e não a via mais como alguém que atrapalhou minha vida e de minha mãe, parecia que estava conhecendo-a de verdade. Conversávamos sobre tudo, ela me contou sobre astrologia e as fases da lua, me mostrou as constelações e consegui até visualizar algumas no céu. Mostrei a ela como se maquiar, mudamos seu visual e trocamos confidências dando muitas risadas...
Era tarde da noite quando estava no quarto rodando na cama esperando o sono chegar, fui a cozinha tomar um copo de leite. Na cozinha enchi uma caneca na geladeira e encostei na pia, fiquei ali por um tempinho saboreando e desfrutando daquele momento entre eu e minha caneca de leite. De repente começou a sair uns fachos de luz muito discreta entre meus pés vindo do piso de madeira, comecei a andar pela cozinha até uma cristaleira pesada encostada na parede. Com muito custo consegui movê lo para o lado e abaixo havia um alçapão, havia uma escada de madeira que dava para o porão...mas porque estava tão empoeirado se a casa tinha sido reformada recentemente? Fechei novamente e subi para acordar Marina que demorou um tempinho pra conseguir despertar, então contei o meu achado e fomos explorar o lugar.
Pegamos uma lanterna e começamos a descer. Cheirava a lugar fechado e temia em encontrar ratos e baratas pelo caminho por isso coloquei Marina na frente. Parecia grande o lugar, com sorte encontramos um interruptor próximo da escada e quando acendemos não pude acreditar. O lugar era imenso, com estante em um canto com um monte de livros empoeirados, com duas poltronas de leitura próximas e um abajur de pé entre elas. Havia um espaço vazio em outro com apenas uma mesa de madeira discreta e muitas velas em cima e próximo um cálice e algumas pedras; não sabia o que era aquilo tudo, apenas que acabamos de encontrar lugar secreto só para nós. Na parece havia um retrato de uma mulher com cabelos negros e olhos pertubadoramente expressivos, parecia que onde fosse ela te observava. Tive a sensação de já conhecê-la, mas era impossível porque era um retrato pintado a mão e aparentava ser muito antigo.
Marina por sua vez foi logo para os livros, começou a passar a mão entre eles e um chamou sua atenção. Era um livro grande, de capa marrom envelhecido e com tinha um medalhão de metal na capa com arabescos em volta da letra "M".
"M"? Pensei...
Tentei abrir, mas não consegui pois parecia estar trancado, mas não havia nenhum lugar para encaixar chave. Ficamos intrigadas...como esse livro é aberto? E como esse livro foi fechado? E por quem?
De repente ouvimos um barulho vindo da casa. Corremos para sair mas antes, levei o livro comigo.
O que estão fazendo de pé a essa hora? Disse Ana.
Vim fazer companhia pra Mirian tomar água porque ela estava com medo de descer sozinha. Na hora dei uma olhada pra Marina fuzilando-a e então disse:
Foi isso mesmo. Tive um pesadelo, acordei assustada e com a boca seca e acordei ela pra vim comigo.
Nos abraçando bruscamente Ana encaixou nossa cabeça contra seu peito e disse que ficava muito feliz que estávamos nos dando bem e principalmente que estava perdendo essa rigidez que me fazia ser tão sisuda. Na hora me afastei e olhei pra ela com raiva e quando já ia responder Marina me puxou pelo braço dizendo que estava tarde e que precisava levantar cedo amanhã. Antes que Ana dissesse algo já estávamos subindo a escada.
Deitada com apenas a luz do abajur ligada comecei a analisar aquele livro. Virava ele de um lado ao outro e não encontrava nada onde pudesse abri lo. Como pode um livro ser escrito se não é pra ser lido? Coloquei ele embaixo do travesseiro e fui dormir. Sonhei que estava entrando no bosque e conforme ia entrando as árvores começavam a balançar como se dançassem em um mesmo compasso. O vento soprava como uma doce canção completando o cenário. Em meio ao bosque havia uma casa de madeira, tomada por trepadeiras e flores fazendo com que ficasse parecida com imagens de contos de fadas... Fui aproximando de uma casa e bati na porta mas ninguém atendeu. Empurrei devagar e ela se abriu, dentro havia uma cama em uma espécie de mezanino com uma escada encostada na parede. Na parte de baixo um sofá poído com uma manta xadrez em cima, um fogão de lenha com algum tipo de cozido no fogo que por sinal cheirava muito bem. Naquele momento pensei em sair porque o dono deveria estar perto mas minha curiosidade foi maior e continuei a olhar. Do outro lado havia muitas prateleiras com potes com ramos e ervas, colheres de pau, e utensílios variados e várias frutas em um cesto e em frente um caldeirão preso acima de uma lareira. Em cima de uma mesinha estava o livro que achamos e estava aberto; no mesmo instante me aproximei dele para ver o que havia escrito e ao me aproximar notei que suas páginas estavam em branco. Não tem nada? Disse em voz alta, quase gritado. Quando a porta se abriu atrás de mim e me virei vi uma mulher e acordei.
Passei a mão embaixo do travesseiro e o livro estava ali intacto. Olhei para o lado e Marina ainda dormia. Levantei e disse pra ela se aprontar que vamos sair.
Onde vamos? Ela diz.
Ao bosque... E comecei a me arrumar.
Tomamos nosso café da manhã e estava caminhando pra porta quando Charlie me chamou.
Onde está indo mocinha?
Vamos dar uma volta.
E posso saber onde estão indo com tanta pressa?
Olhei pra Marina e ela me olhou de volta e começamos a gaguejar tentando arrumar alguma desculpa. Ele cruzou os braços e começou a olhar nós duas.
Estou esperando...Ele disse.
Marina mais que depressa tomou frente. Sabe o que é, estamos indo pro bosque em uma expedição secreta só nós duas e não queremos vocês atrapalhando logo agora que finalmente a estressada da minha irmã está se tornando humana novamente, se permitindo interagir com outras pessoas. Naquele momento tanto Charlie quanto eu ficamos olhando pra ela de boca aberta, não sabia se queria mata la ou dar risada da situação.
Charlie levantou um pouco a aba do boné para observar nós duas e ficou parado por um instante com uma cara fechada, até que não aguentou e começou a dar gargalhadas e saiu andando dizendo que deveríamos estar de volta para o almoço. Então saímos.
Enquanto caminhamos rumo ao bosque perguntei pra ela o que era aquilo. Porque disse aquilo sobre mim?
Marina parou por um instante, se aproximou de mim e disse:
Quer saber Mirian você não está com essa bola toda não, ou começa a tratar as pessoas melhor ou vai acabar sozinha...acha que não precisa de ninguém, que sofre mais que todo mundo, que pode dizer e fazer as coisas e sair impune; vou dizer que não vou admitir mais isso comigo, ou vai ser do meu jeito ou vai voltar a ser solitária, a pessoa que quando chega todos querem distância...Você é muito além que imagina, acredito em você. E voltou a caminhar.
Fiquei ali parada sem saber o que dizer ou pensar enquanto ela continuava a andar dando quase pulinhos fazendo o cabelo balançar como se nada tivesse acontecido, quando parou.
Você vai ficar parada aí o dia todo sentindo pena de si mesma ou vem pra aventura comigo?Estendeu a mão pra mim...
Naquele instante senti vontade de segurar sua mão, num impulso comecei a dar pulinhos também e quando percebi estava correndo pela campina e ela veio atrás dando risadas e sorrindo também.
Paramos de repente. A nossa frente estava o bosque. Ficamos paradas ali observando como se observa uma pintura muito famosa, com aquele olhar de curiosidade e respeito, então enfim dei o primeiro passo. Olhei para trás para me localizar e não me perder procurando a saída. O bosque era de um verde sem igual, com árvores de todos os tamanhos, muitos arbustos assim como em qualquer lugar...mas sua energia era diferente, como se o conhecesse e ele a mim. Andamos por horas, sabia que aquela casa do sonho era ali só não conseguia me lembrar o caminho. Ouvimos barulhos de água e começamos a segui lo.
Meu coração deu um sobressalto quando vi, que coisa mais linda...
Sentamos nas pedras e mergulhamos os pés na água que por sinal estava bastante fria, causando um "ui" quando colocamos. Comecei a me lembrar de casa e senti saudades. Virei pra Marina que também estava perdida em seus pensamentos e perguntei.
Marina, tudo o que me disse hoje, acha mesmo tudo aquilo de mim? Perguntei mas arrependi e não sabia se queria a resposta.
Calmamente ela se ajeitou na pedra cruzando uma perna na outra e se virou pra mim.
Olha Miriam, compreendo toda sua raiva e frustração. Nosso pai saiu de casa quando você era muito pequena pra viver com minha mãe e eu, sei que nos culpa e até entendo mas o resto das pessoas não tem que ficar aguentando. Nem mesmo eu, pois sou tão inocente quanto você...eles são adultos e é isso que fazem, enfiam os pés pelas mãos. É da natureza adultisse deles.
Naquele momento dei uma tremenda gargalhada..."adultisse" que palavra é essa, isso nem existe...e continuei a dar risada. Ela sorrindo também me disse que faz parte do vocabulário Marina de ser e continuou dando risada. Depois continuou.
Sabe Miriam gostei de você desde a primeira vez que te vi, pois nosso pai havia me contado tanta coisa, contou histórias de vocês dois e o me disse o quão maravilhosa minha irmã era. Senti orgulho de mim mesma e com sorte por ter alguém com tantas qualidades que ele havia descrito mas quando te conheci foi bem diferente, se mostrou alguém cruel, egoísta e cheia de si, fazia questão de mostrar pra todos o quanto eu era insignificante na sua vida, me sentia péssima por isso...
Abaixei minha cabeça e comecei a chorar em silêncio. Ela colocou a mão nas minhas costas e me disse que era bom chorar, que as lágrimas purificava a alma. Ficamos ali por um momento, eu chorava e ela calada alisando minhas costas.
Enfim, comecei a falar. Tenho tanta raiva dentro de mim que ás vezes pareço que vou explodir, quero gritar e gritar... Naquele momento ela me interrompeu, se levantou e me estendeu a mão. Fiquei parada olhando pra ela e resolvi levantar também sem entender.
Este é o momento, coloque tudo pra fora de uma vez por todas. Grite.
Está doida? Gritar...
Grite, não tem ninguém aqui para nos ouvir. Vai ser bom, grita.
Fiquei acanhada e Marina começou a gritar.
Este grito vai pra você Miriam por todas as vezes que me destratou. AAAAHHHHHHH!!!!!!
Olhei pra ela e disse: Este vai pra minha mãe e pro meu pai que resolveram se separar e por terem arrumado outras famílias....e gritei....AAAHHHHHH!!!! Tanto que meu peito doeu...
Quanto mais gritava mais queria gritar....senti como se toda tristeza estivesse saindo pela minha boca deixando apenas um grande vazio. Então comecei a dar risada até doer minha barriga...
O que foi? Marina perguntou.
Estamos parecendo duas doidas gritando no meio do mato. Me aproximei dela e a abracei o mais forte que pude.
Obrigada por não desistir de mim...
Ela com os olhos cheio de lágrimas começou a andar dizendo que estava ficando tarde, melhor irmos embora antes que mandem um grupo de resgate.
Chegando na casa Ana disse que nosso pai saiu a nossa procura porque haviam escutado gritos vindo do bosque e ficou preocupado. Colocamos a mão na boca e começamos a dar risada. Não foi nada apenas estava aquecendo um pouco a garganta.
Após a chegada de Charlie que nos deu umas broncas por estar gritando sem motivo, almoçamos e fui tirar uma soneca.
Por volta das seis da tarde o telefone tocou e a notícia que veio do outro lado da linha mudaria nossas vidas para sempre.
Estava deitada em minha cama e Marina na dela quando a Ana pediu pra que descessem com o semblante assustado.
Charlie estava sentado no sofá com a mão na cabeça, quando entramos ele se levantou veio pro meu lado me encaixou junto ao seu peito tão forte que dava para sentir as batidas aceleradas do seu coração. Sem entender nada do que estava acontecendo comecei a perguntar o que houve.
Charlie começou a falar. Hoje de manhã sua mãe estava a caminho do mercado com os meninos, veio uma caminhonete desgovernada, avançou o sinal vermelho e bateu de frente contra o carro deles.
Naquele momento não sabia o que pensar, minhas pernas tremeram, minha cabeça girou e a última coisa que ouvi ele dizer foi que todos haviam morrido. Desmaiei.
Acordei no meu quarto, estava escuro e silêncio. Fiquei ali parada tentando colocar os pensamentos em ordem pra saber se tudo havia passado de um sonho ou... Dei um pulo da cama, corri rumo a porta que dava para o corredor e encontrei os três parados na sala de cabeça baixa.
Cadê minha mãe? Quero ver minha mãe. Comecei a chorar.
Estamos já com as coisas prontas estava aguardando apenas você acordar, vamos voltar pra casa.
Conforme ele falava parecia que tinha reduzido o volume do mundo em meus ouvidos, via apenas sua boca se mexendo mas nenhum som saía. Dei uns passos para trás e num impulso sai correndo pela porta da frente. Estava escuro mas conseguia ver todo o caminho mesmo não sabendo para onde estava indo. Quanto mais corria mais impulso ganhava para correr. Todos saíram correndo atrás mas sumi em meio a escuridão.
A certa altura tropecei e caí e fiquei parada ali com o rosto encostado na terra, fechei meus olhos e comecei a chamar por eles.
Kay....Eloy...Mãe! Porque fizeram isso...
Miriam...Vai ficar tudo bem. Estamos aqui com você.
Me levantei, passei a mão na minha roupa que estava suja de terra, ergui para o céu que estava muito estrelado e comecei a dizer:
Não sei se realmente existe alguém olhando por todos nós aqui em baixo mas se tiver traga-os de volta. Prometo que serei uma boa garota. Eu prometo...
Mãe, me perdoa por te arruinado sua vida... e chorei.
Venha meu bem, não fique assim, vai ficar tudo bem. Disse Charlie.
A viagem de volta foi longa, fiquei olhando para a estrada torcendo para não chegar no destino. Comecei a imaginar minha última manhã com eles, com os meninos e de repente fiquei culpada por não ter ouvido o que a Ester queria me dizer. Ah se pudesse voltar atrás.
Chegamos quase pela manhã, os primeiros raios começou a iluminar o céu. Lembro que Ester sempre dizia que não havia nada melhor para curar a dor que o novo dia. No local havia muitas pessoas conhecidas e outras desconhecidas, todos vinham me dizer palavras de conforto, dando abraços apertados e tapinhas nas costas; até o pessoal da escola estava lá. Só pensava em uma coisa, não quero ver eles, não quero.
Encostei na porta do lado de fora e ouvi o pai dos meninos chorando. Senti pena dele... Hesitei para entrar mas Marina segurou minha mão e sorriu de canto pra mim e me puxou.
Minha mãe ficou no meio e cada um deles ao seu lado, os meninos pareciam dois anjinhos dormindo só suas bochechas que não estavam mais rosadas como sempre... minha mãe parecia que tinha rejuvenescido uns bons anos.
Me perdoe por todas as coisas não ditas, abraços e beijos recusados e principalmente por não ter sido a filha que desejou. Cochichei em seu ouvido baixinho dei um beijo em sua testa gelada e dei nos meninos e saí do local.
Miriam onde está indo? Disse Marina.
Pra minha casa.
Como assim pra sua casa...E a sua mãe? Não vai...por favor eu...
Ela morreu, ok? Acabou, não preciso mais ficar aqui...E me faça um favor, para de me seguir. Me deixe sozinha...

Duas FacesOnde histórias criam vida. Descubra agora