590 dias antes de Hannah

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Dezembro. Quase um ano sem Hannah. O verão estava com tudo naquele ano. O mormaço me sufocava, me queimava.

Os seis meses que se passaram foram os piores de toda a minha vdia. Além de rebelde e "a próxima Hannah", eu era agressiva e perigosa. Pessoas me olhavam feio, falavam mal de mim e me evitavam em dobro. Tinham medo de mim. Idiotas. Não deviam temer a mim. Não consigo fazer mal a uma mosca. Devem temer Represália. Ou pior: temer acordá-la.

Minha mãe sabia que estava sendo difícil para mim e tentava me ajudar, dizendo que quando a encontrassem e ela explicasse tudo, a coisas ficariam melhores. Tudo voltaria ao normal. Coitada da minha mãezinha. Depois de Hannah nada mais foi normal. Verena era a única que não sofria com isso. A vida dela foi seguindo como sempre seguira, talvez até melhor. O povo queria proteger a menina. Queriam ela longe de mim. Se ao menos eu soubesse o que eu causaria, se tivesse dado ouvidos ao povo... O povo está sempre certo, de certa forma.

Como viagem de final de ano, minha turma foi para o rio, nossa praia. Havia bastante gente sacrificando suas férias para ficar ao lado dos professores e curtir o rio por quatro dias. No ônibus, sentei-me ao lado de minha prima. Ela era um ano mais velha e a única pessoa que não me evitava. Por obrigação, acredito eu. Ela pedia gentilmente que os outros me deixassem em paz e não trbalhava com muito empenho em me proteger. Mas ela era minha única opção.

Não sei se eles estavam fazendo de propósito ou eram só péssimos cochichadores, mas Mario e Galileu, sentados nos bancos ao lado do meu, falavam baixo e viravam em minha direção. Ficaram assim o caminho todo. Os boatos sobre Hannah e Octavio juntos já tinham parado, graças a polícia. Eles fizeram discursos em público usando os dois como exemplos a não se seguirem? Sim. Desmentiram o fato de eles terem fugidos para ficarem juntos? Não. Mas explicaram para o povo que eu e minha família estávamos abalados e com raiva de Hannah (não de tudo mentira), que entendíamos o quão terrível essa possibilidade era e o quão importante seria conservar seus filhos. Por isso eu não era mais a próxima Hannah. Apenas a rebelde psicopata. Porém, Galileu nunca desistiu de me fazer de idiota.

A praia era o único lugar onde se era permitido usar roupas mais curtas. As meninas usavam um maiô que ia do joelho até as mangas até a metade do braço, com um buraco redondo nas costas. Além de tudo usávamos uma touca. Jamais se mostrava os cabelos, a não ser num jantar formal, mas isso é uma outra história que ainda está por vir. Minha roupa de banho era branca e azul, assim como minha touca. A de minha prima era igual à minha, só que cor-de-rosa. Ela sabia bem dividir o tempo entre mim e as amigas. Ficava com pena por eu estar sempre sozinha. Eu vestia uma blusa por cima do maiô quando estendi minha solitária toalha e finquei o guarda- sol amarelo na areia. Fui tirar a blusa para dar um mergulho quando começaram as provocações.

-Espero que realmente tenha alguma coisa por debaixo dessa blusa –era Galileu.

Nos primeiros dias após eu ter acertado seu nariz, ele ficou quieto, temendo acordar a nova Kat. Depois, apenas mantinha uma distância segura. Agora tudo voltara ao normal. Menino imbecil. Eu o ignorei e andei na direção da água gelada. Uma rede ficava mais para a esquerda na intenção de evitar que alguém fosse levado pela correnteza. Mergulhei. Foi um alívio ficar ali, submersa, longe do calor, das palavras, das pessoas. Nadei até a metade do rio, ali não dava pé para ninguém. A água era cheia de folhas, um pouco de lama e ocasionalmente um peixe. Era um tanto angustiante. Aquele pequeno momento de paz obrigou-me a pensar.

O deserto, a fronteira, o infinito trilho do trem. Os vagões chegavam carregados de produtos importados e saíam com os produtos que exportávamos. Onde parava esse trem? Rumo ao desconhecido, ele soltava fumaça e rodava suas rodas. Hannah e eu sempre adoramos observá-lo partir. Ir e ir e nunca parar. Desaparecer no horizonte, na areia, no mistério.

-Vamos, Kat. Seguir o trem.

Os guarda da fronteira não nos impediram. "Crianças peraltas, deixem-nas. Voltarão antes do anoitecer ou não voltarão". Hannah foi na frente e eu segui com aminha garrafa d'água. Era inverno e nevava nas montanhas. Mas não ali. O clima daquele deserto era um mistério assustador.

-Até onde vamos, Hannah? –perguntei para minha guia.

-Só vamos olhar, Kat.

Os trilhos estavam quentes como as formas de pão de papai. O chão exalava calor, a areia engolia meus sapatos. O olhar de Hannah era quase maníaco. Queria muito saber o que se escondia no final da linha do trem. Eu, gata. Hannah, gata.

Alguns metros desconhecido a dentro e um coiote pulou de um arbusto para cima de nós. Hannah e eu gritamos como loucas e passamos correndo pela fronteira. Os guardas riram. Nós só paramos quando chegamos na praça, na proteção de nossos pais.

Depois daquele dia, as noites em claro, folhas de papel e grafites gastos dobraram, se não triplicaram. Anotávamos que tipo de roupa precisaríamos, água, comida, mochila confortável, o que dizer aos nossos pais...

Emergi. As risadas à beira do rio pareciam distantes, o barulho da água, as folhas em meus pés. Eu sabia o que Hannah havia escrito na carta de meus pais, é claro que eu sabia.

-Diremos que não podemos mais viver com tanta curiosidade em nossos corações –ela iniciou o plano. –Algo sobre como a sociedade é opressiva e queremos ver-nos livres disso tudo. "Não nos procure, mãe e pai. Deixe-nos. Criaram-nos o suficiente, agora é hora de nós criarmos nossa própria história. Estamos indo rumo ao desconhecido. Talvez fiquemos por lá. Obrigada por tudo e adeus. Adeus Sociedade do Sul. Adeus mãe e pai".


Oi curiosos e curiosas, como estão? Comentem e curtam se gostaram! E vocês me ajudariam na divulgação da história? É simpes, apenas indique para seus amigos, me deixará incrívelmente feliz :D. Muuuito obrigada pelas 300 leituras, Kat agradece!

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