Mente e Ira

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Espero que possam perdoar-me pela demora na postagem. Em compensação, vou postar o próximo muito em breve. Se não hoje à noite, amanhã bem cedo, prometo!

Espero também que curtam esse capítulo :)



-E o que faz em An'angelo?

De todas as coisas que poderia ter escolhido perguntar, decidi-me por essa, e foi uma simples lógica que me fez tomar essa decisão. Uma lembrança, para dizer a verdade. O prédio da prefeitura da Sociedade do Sul. Lá havia eletricidade de sobra, luxo, mordomias, comidas divinas, empregados... Por mais que An'angelo fosse maravilhosa, por que alguém escolheria o trabalho de barista sob essa opção?

-Minha mãe me tirou da sociedade quando eu tinha sete anos de idade. Você devia ter apenas três anos na época. Além disso, prefiro viver uma vida simples, muitas vezes sofrida, num lugar onde possa ser eu mesmo, do que ter os luxos dos quais meu tio desfruta e viver uma mentira, uma injustiça. Você não faz ideia do que acontece naquele prédio Kat. A situação é muito pior do que apenas tradições e valores que parecem injustos.

-O que pode ser pior do que matar pelo simples ato de vestir-se com roupas coloridas?

-Mentir sobre tudo.

Crispim estava fazendo suspense e eu só queria respostas. Represália remexeu-se, furiosa, ao som da palavra mentira. O governo mentia para nós? Além de nos fazer sofrer todos os dias eles mentiam? Quando me dei conta, tinha dito essas palavras em voz alta, encarando meu prato vazio. Hannah permanecia calada, interessada na conversa. Crispim tomou um gole de suco antes de continuar.

-A sociedade do Sul é uma oligarquia, Kat.

Cheguei a tremer, fisicamente, quando Represália quis levantar-se e gritar. Controlei-a. Quase pensei que Crispim estava mentindo, fazendo uma brincadeira de mal gosto, mas o que ele ganharia com isso? Eu balancei a cabeça negativamente. Haviam eleições na Sociedade do Sul. Homens maiores de idade escreviam o nome do candidato que queriam que vencesse em um pedaço de papel, colocavam nas urnas de sua cidade e esperavam o cálculo final. Acontecia a cada quatro anos desde que me entendo por gente. Os candidatos eram parte de três ideologias diferentes, e nem sempre a mesma ideologia vencia as eleições. Os votos eram contados e divulgados pelo Conselho do Povo.

-Votos num pedaço de papel não valem nada –ele cuspiu as palavras com fúria. –Aqueles que contam os votos são corruptos também! Pense Kat, pelo tempo que esteve viva, pelo menos três eleições já ocorreram. Quais foram os nomes dos candidatos vencedores? Oh não me diga, deixe-me adivinhar: Grenado? Rittlebach?

Ele estava certo. Os vencedores das eleições eram sempre membros das famílias Grenado ou Rittlebach. Se não eram eles, eram associados a eles. O terceiro partido nunca era eleito, mas eu sempre assumi que isso se dava porque uma minoria votava neles.

-Não é verdade Kat. Minha família e os Rittlebach vêm governando a Sociedade do Sul há quase quarenta e cinco anos. Eles dão a ilusão de que vocês podem votar, escolher por si mesmos, mas não é verdade! Eles alternam entre si, corrompem o terceiro partido e subornam o Conselho do Povo.

-M-mas, e os ideias que cada partido defende? São diferentes, como poderiam trabalhar juntos? –eu me recusava a acreditar nisso tudo.

-É tudo ilusão, mentiras! Abra os olhos Kat, pense um pouco! O que esses partidos fizeram de tão exclusivo? Um defende os trabalhadores, outro defende os mais pobres. Arranjam empregos de péssima qualidade para alguns, dão pão e abrigos precários para outros e chamam isso de política. Em troca, lucram, lucram loucamente! Os benefícios que deveriam ser da população são desviados para eles! Eletricidade, bens que eles mesmos chamam de "supérfulos", importados...

-Eles desfrutam disso tudo enquanto a população tem que sofrer por um sabonete? –Represália tomou conta de mim. O problema é que não tinha em que ela descontar sua fúria a não ser nas palavras. Esqueci do mal estar e foquei em Represália. –Todo o nosso sistema de governo é uma MENTIRA? Não passa da merda de uma ilusão?

Quanta hipocrisia cabe dentro de um ser humano? Namoro antes dos dezoito é proibido. Sexo antes do casamento é pecado. Roupas adequadas, cabelos escondidos, mentes limitadas, apenas homens fazem uma coisa, apenas mulheres fazem outras poucas... Crispim contou que todas essas regras não se aplicavam aos membros do governo. Viviam na luxúria, na ganância, na vaidade, no que eles próprios chamavam de pecado, que puniam com agressão e humilhação pública. Represália socou o prato vazio na minha frente e aquietou-se.

-Quarenta e cinco anos? Estamos presos nesse regime hipócrita há quarenta e cinco anos?

-Aproximadamente, sim. Essa ideia de sociedade perdida no tempo já era característica de vocês ha muito tempo, antes disso tudo. Porém não era tão radical. Os impostos dos importados não eram tão caros, cabelos soltos não eram um problema e a qualidade de vida era superior. Eu estou estudando marketing numa universidade agora –fiquei confusa com essa última informação, mas ele continuou logo. -Uma das primeiras coisas que aprendi é que medo vende. Se você faz uma pessoa sentir-se inferior, inadequada ou diferente, ela vai fazer o que for preciso para sentir-se melhor. Um sistema capitalista trabalha com marketing constantemente, portanto, promove uma sociedade que se sente inadequada e inferior. A ideia do "pecado" e "punição" é parecida. Eles convenceram a população de que estavam vivendo errado, de que seriam punidos, e, aos poucos, radicalizaram essas ideias, até chegarem a o que são hoje.

Soquei o prato de novo, quebrando-o ao meio. Isso ia muito além do que eu ou qualquer um no clube da Primavera podia imaginar. Não era questão de tradição, era enganação. Minha viagem para An'angelo estava sendo muito mais valiosa do que eu esperava. Hannah balançava a cabeça em descrença com uma expressão diferente. Crispim e eu a encaramos, esperando que ela falasse.

-Isso... Não pode ser. Meu pai já foi membro do Conselho do Povo. Trabalhou lá por seis anos antes... Antes de conseguir autorização para a ampliação da padaria. Não! Kat, ele sabe! –Hanna agarrou meus ombros, preocupada. –Seis anos e a reforma... Meu pai fez parte dessa corrupção horrível!

Por algum motivo, eu não estava muito surpresa. O jeito como ele reagiu quando Hannah saiu e voltou... Ele desistiu dela. Talvez desconfiasse que ela descobriria a verdade aqui fora, nas cidades do deserto. Não queria viajar com ela pois sabia como conseguir qualquer coisa na Sociedade. Como ex-participante do Conselho, ele poderia usar informações contra o governador para conseguir o que quisesse. Lembrei também da professora de Verena. Ela era muito mais do que uma professora de ballet. Ela sabia. Pregou contra todo o Conselho, todo o governo, tudo o que nos fizeram acreditar pois ela sabia de tudo.  Preocupei-me com Verena. O que seria dela, sozinha naquele mundo nojento, símbolo de uma revolução perigosa? Eu tinha que fazer alguma coisa muito rapidamente.


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