Prólogo

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O som do despertador ecoou no fundo da mente dele e até que conseguisse perceber, de fato, que precisava acordar, a campainha já estava sendo tocada freneticamente, seguida por fortes e rápidas batidas na porta. Alguém estava, definitivamente, querendo acordá-lo.

- Miguel! - gritou uma voz na porta - Acorda porra!

- Já vou - respondeu, com a voz embargada, o delegado da Polícia Federal, que acabara de perceber que não estava mais dormindo.

- Mas que merda! - resmungou, desapontado, não só por não poder continuar dormindo, apesar de precisar desesperadamente de pelo menos mais dez horas ininterruptas de sono, mas também por não ter acordado quando o despertador tocou. Lembrava-se, remotamente, de tê-lo ouvido e desligado para mais alguns instantes de sono, mas o que deveria ser somente alguns minutos transformara-se em 20.

A caminho da porta, Miguel preocupou-se em colocar somente uma calça para atendê-la e foi sem surpresa que viu Pedro entrar em seu modesto apartamento, com um copo de pingado em uma mão e um misto-quente embrulhado em guardanapo na outra. "De novo ele comprou o misto aqui do bar de baixo, mesmo sabendo que eu não como carne" - pensou, lamentando a falta de atenção do seu parceiro.

Antes mesmo de dar bom dia, foi obrigado a ouvir:

- Pô Miguel, você precisa ir logo pra Asa Sul, cara! Esse bairro aqui é um lixo! Sem contar que eu tenho que sair lá da Asa Norte, passar do lado da PF, só pra vir aqui te pegar! - reclamou Pedro enquanto fazia espaço na mesa de centro, cheia de jornais e revistas esparramadas, para depositar o café e o lanche indesejado. Em seguida, pegou o controle da TV para ver o jornal da manhã.

Miguel havia decidido morar em um bairro afastado do Palácio do Planalto e escolheu o Taguatinga. Sentia-se bem ali. Não alardeava para os outros ser um delegado da PF. Ali, naquele bairro simples, de pessoas simples, sentia-se bem, integrado. Era isso que buscava, distância do falso glamour do Plano Piloto. O único porém era a distância. A sede nacional da Polícia Federal ficava no extremo da Asa Norte, totalizando 30 quilômetros, só de ida. E todas as vezes que Pedro combinava de buscá-lo, se via obrigado a responder à mesma pergunta: por que escolhera morar ali. Não existia uma resposta simples e, por vezes, optava por apenas grunhir. Hoje resolveu tentar dar um ponto final na pergunta repetida inúmeras vezes.

- Não adianta Pedro. Eu gosto daqui - disse e interrompeu a frase para um bocejo, enquanto fechava a porta - aqui ainda não sofro com aquele agito todo da molecada da Universidade de Brasília. - e foi para o banheiro, escovar os dentes, ouvindo Pedro gritando da sala.

- É, nesse ponto você tem razão, o trânsito fica insuportável quando estou voltando para casa. Por mim eu já tinha me mudado de lá, mas você sabe como é a Eliza, quer estar perto do centro, do shopping, da academia. - a frustração na voz de Pedro não escapou ao ouvido do delegado. - Mas você está no sossego por pouco tempo. Espera só até o pessoal parar aí embaixo da sua janela para ouvir funk. A ideia causou um arrepio na nuca de Miguel. Taguatinga ainda era um bairro tranquilo. Torcia para que essa tranquilidade perdurasse.

- Bom, pelo menos estar perto de todas essas coisas, me dá a vantagem de não precisar comprar um carro para a Eliza. Imagina que carro ela ia querer. Nem todo o meu salário de agente da PF ia dar conta de cobrir todas as despesas dessa mulher.

Achou melhor não dar margem para que a conversa continuasse. No fundo, não gostava muito de conversar pela manhã. Tinha um certo ritual a seguir e seu dia só começava realmente depois de tê-lo cumprido. Ainda estava na escovação quando ouviu a televisão, aumentada por Pedro:

- Após as denúncias feitas pelo empresário Edson Nogueira, dono da empresa de ônibus acusada de ter que pagar propina para o governador do DF, Moreira Tavares, o promotor de Justiça, Guilherme Pereira Nunes, apresentou ontem ao ministério público, denúncia de corrupção passiva contra o governador e mais três deputados distritais.

"Operação catracas", pensou. Foi como a PF denominou as investigações sobre o desvio de parte da arrecadação das tarifas de ônibus intermunicipais, que faziam o transporte entre as cidades satélite

e o Distrito Federal. A parcela desviada deveria ser destinada ao pagamento de serviços de transporte executivo de funcionários da esplanada dos ministérios, algo que nunca aconteceu, ficando comprovado que a empresa de Edson emitia notas fiscais falsas, permitindo o desvio do dinheiro público.

- Olha aí o caso do Marcão. Estava demorando a imprensa falar alguma coisa. Quem foi que vazou dessa vez, ele mesmo? - perguntou Pedro, sem olhar para o delegado.

- Foi, mas a pedido do Ferrari - disse Miguel, despreocupadamente, enquanto terminava de colocar seu terno, depois de sofrer alguns segundos com o nó da gravata. - O estranho é que ele odeia política, mas ultimamente tem autorizado o vazamento de informações que

envolvam figurões do Legislativo. Até onde eu sei, a construção dos prédios novos obrigou a cúpula a firmar alguns acordos e ele não ficou nem um pouco feliz com isso. Parece que ele resolveu que tem que manchar a imagem de alguns caras para mostrar a eles que tem pulso firme na PF. Se eu bem conheço o Ferrari, as coisas vão ficar cada vez mais difíceis para nós.

- Ainda mais que estamos em ano eleitoral. Vai sobrar pra todo mundo. - complementou Pedro.

Ferrari era um tipo difícil. Na Polícia Federal há mais de 35 anos, ele chegou a Brasília ocupando o mesmo cargo de Delegado que Miguel ocupava, mas logo se tornou Superintendente Geral da PF, primeiro para o DF, depois para toda Brasília e, finalmente, tornou-se Superintendente

Geral para a região Centro-Oeste. Os métodos usados para alcançar o posto são questionados nos bastidores até hoje, mas nunca conseguiram encontrar qualquer evidência de desvio de conduta.

Para Miguel, tudo não passava de especulação. A carreira de Ferrari era um exemplo para ele.

- Vamos embora! - disse Miguel, caminhando decididamente para a porta, já com sua pasta de couro surrada em uma das mãos enquanto a outra levava sua pistola 9 mm para o coldre.

- Mas e o seu café, e o misto? - lamentou Pedro, enquanto pegava o pingado da mesa após um aceno de cabeça de Miguel.

Ao passar pela porta, notou uma correspondência no chão, com o brasão da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde havia se formado bacharel em Direito, após seis anos de um curso que levaria cinco. Automaticamente, pegou-se pensando que nunca quis tentar exercer a profissão e, ao invés de tentar passar na Ordem dos Advogados do Brasil, empenhou-se em ser aprovado no concurso para delegado da PF. Sua mãe ainda lamentava essa decisão. Sempre que se falavam, ela fazia questão de lembrá-lo. "Acho que o que ela mais queria era que eu não tivesse saído de perto dela". No fundo, não sabia dizer o que ela lamentava mais, ele não advogar ou ter ido morar tão longe dela, que nunca deixara São Paulo. Amassou o envelope e o jogou no lixo da cozinha.

Logo que saíram do pequeno prédio de três andares, sentiu a secura do ar de inverno de Brasília, notadamente um dos mais desagradáveis que se pode imaginar. Ao contrário do frio que era de se esperar, com vento e garoa, comuns em São Paulo nessa época do ano, em Brasília sofriam com o clima de deserto. Entraram no carro da PF e, tão logo Pedro girou a chave no contato, ouviram o rádio alardear que a umidade do ar poderia chegar a 8%, "que maravilha" - pensou.

- Puta que o pariu! - alardeou Pedro ao ouvir a notícia. - Desse jeito a gente vai secar até morrer.

- Pedro, como está nossa agenda para hoje? - disse Miguel, ignorando a preocupação de Pedro.

- Bom chefe, hoje você ficou de se reunir com o responsável pela 'Ouro de Tolo' - disse ele, mencionando a operação que investigava a venda ilegal de ouro em Brasília.

- A que horas? - perguntou Miguel.

- Putz, daqui a pouco! - assustado, Pedro ligou a sirene e o giroflex da viatura, enquanto procurava por uma passagem para o Corolla preto de placas brancas que dirigia. Miguel sabia que, apesar das avenidas largas e com poucos cruzamentos, encontrariam muito trânsito no caminho até os prédios da PF e não questionou a atitude do seu parceiro. - Relaxa chefe, vai dar tempo! - Miguel não podia sequer reclamar, afinal, se chegassem atrasados, a culpa seria sua. Pensou que talvez fosse melhor aumentar o volume do alarme.

A Mentira em Seus OlhosOnde histórias criam vida. Descubra agora