Não gosto de gente. De um modo geral, vejo o ser humano como algo bem decadente. Lógico que há e sempre houve os que valem a pena, mas a maioria de nós chafurda na mediocridade. Há os que se iludem, acreditando que Deus fez o mundo para nosso deleite, e que por isso podemos fazer o que bem entendermos de tudo a nosso redor. Esses, então, são os mais infelizes, por serem de uma imaturidade ridícula. Se existe mesmo um Deus, criador de tudo e de todos, por que ele teria tanto menosprezo por tudo o que não fosse humano, a ponto de permitir que destruíssemos o que bem entendêssemos?
Se somos, de fato, as mais elevadas criaturas, nem quero imaginar o que sejam as mais baixas. Muita gente acredita em demônios, e que devem ser eles temidos e odiados. Penso que, se eles existem, são muito melhores que nós. Afinal, sua natureza seria fazer o mal, portanto não enganariam ninguém. Nós, por outro lado, nos revestimos de probidade, bancando os cristãos tementes a Deus, e não passamos de chacais. Escória da pior espécie.
Cansei de ouvir balelas do tipo "temos de ajudar os mais necessitados, e sem esperar nada em troca". Hipócritas! Todos fazem algo querendo receber algo, ainda que seja apenas um olhar de admiração. É sempre nossa vaidade, no mínimo, que fala por nós.
Não acredito na bondade humana. Já vi horrores demais para crer nela. E não me refiro a guerras e torturas em porões de ditaduras, não. Refiro-me a mães destruindo a auto-estima de filhas só porque, enquanto as garotas desabrocham, elas fazem a curva descendente de sua beleza. De pais que menosprezam filhos que não têm o perfil com o qual eles sonharam. De avôs que estupram netas durante anos. É dentro das famílias, essa célula ilibada da sociedade, que as maiores crueldades são perpetradas. E ainda vêm os outros me dizer: "Céus você nem parece gente! ". Pois não poderia existir melhor elogio do que esse.
Mas o pior e nascer bicho. Quando eu era mais nova, pensava que na próxima encarnação eu iria pedir para voltar animal. Qualquer um; amo todos. Contudo, tendo em vista o desprezo com que os seres humanos tratam essas criaturas infinitamente superiores a eles, desisti. Enquanto eu for gente, haverá leis a me proteger de meus semelhantes. O ruim disso é que as leis os protegem de mim também.
Todavia, há indivíduos de quem eu gosto muito. Acho que até amo. Minha mãe por exemplo. Meu pai, não. Francisco Jensen era um cretino ignorante que não me protegeu quando, aos cinco anos, um amigo dele, um velho de sessenta anos, começou a abusar sexualmente de mim. Meu paizinho achou que comecei a fazer má-criação para o velhote porque eu era mesmo um membro da raça maldita, como ele chamava todos os familiares de minha mãe. Sim, porque ele não era meu pai de verdade. Registrou-me só para poder ter a alegria de ouvir as pessoas suspirando quando ele contava que aceitou cuidar da filha de uma mãe solteira. Uma pérola de homem. O bom de tudo isso é que fiz um pacto comigo mesma desde muito cedo: ninguém jamais iria pisar em mim. E nada neste mundo ou no outro iria me impedir de alcançar meus objetivos.
Ah, é! Esqueci-me de me apresentar.
Nasci numa ensolarada tarde de três de abril. Minha mãe, muito católica, seguiu os passos da mãe dela e decidiu me batizar com o nome da santa do dia. Três de abril é dia de Santa Irene e também de Santa Quilônia. Ela escolheu Quilônia._ Por quê?! -perguntei, desesperada, quando pela milésima vez, fui alvo de chacota na escola.
_ Porque é um nome diferente, minha filha. Você praticamente não precisa de sobrenome, quase ninguém se chama Quilônia por aí.
Vê lá se isso e desculpa pra uma calamidade dessas.
_ Mãe, esse nome é ridículo!
_ Não diga isso! Santa Quilônia é muito milagrosa.
_ Se fosse, seu primeiro milagre seria mudar de nome e fazer com que o mundo esquecesse esse palavrão. Isso parece nome de doença! "Você soube? O pobre Joãozinho contraiu quilônia. Está muito mal, o coitado..."
_ Ora, deixe de coisa!
_ Para você que se chama Genoveva, tudo bem, não é?
_ Amor, você tem uma tia Valburga e uma Vilibalda. Viu como poderia ser pior?
_ Mas eu poderia me chamar Irene!
E corria para chorar no meu quarto.E essa sou eu, Quilônia Jensen, filha de mãe mineira e pai americano. Os dois se conheceram nas férias de verão na praia, minha mãe engravidou, ele disse "Foi bom conhecer você" e se mandou para os States. Papinho corriqueiro. Nada me tira da cabeça que foi por isso que ela não optou por Irene.
Bem, o que não tem remédio... Então, dou a todos meu apelido, Quilly, que combina comigo, sabe? É um apelido charmoso, e eu sou um verdadeiro tesão. Minha mãe vivia rindo de mim, dizendo que minhas pernas eram muito finas, minha cintura grossa e meu cabelo escorrido. Como não sou de chorar pelos cantos, me matei de fazer ginástica e dança, e graças a isso hoje tenho um corpo de arrasar. Meu cabelo "escorrido", perfeito, é um loiro-acinzentado super diferente. Tenho olhos castanhos, pele de porcelana, e trepo como ninguém. De fato, não me dou bem com falsa modéstia. Aliás, toda modéstia é falsa. Acho o fim da picada quando uma garota recebe um elogio e, em vez de se alegrar e agradecer, finge ter ficado constrangida. Porra fico tentando adivinhar quem disse pra ela que não fica bem uma moça demonstrar que concorda plenamente que é bonita. Eu, não, adoro ser elogiada. Afinal todos têm muitos motivos para me elogiar.
Há quem diga que não tenho a menor consideração pelos sentimentos alheios. E não tenho mesmo. Não procuro ferir ninguém, mas, se isso acontece, é acidente de percurso. Cada um que cuide de suas feridas. Não dou trabalho pra ninguém, e em minha opinião, neste mundo de incompetentes e sanguessugas, já é uma grande contribuição eu ser assim.
Detesto trabalhar. Odeio responsabilidades. Se eu pudesse, passaria todas as noites na farra. Não há nada melhor no mundo do que encher a cara de cerveja num barzinho na beira da praia, jogando conversa fora com os amigos. E depois ir dormir com um gostosão que no dia seguinte já terá ido embora, por querer tanto compromisso quanto eu.
No entanto, viver neste vale de lágrimas custa caro. Além disso, tenho minha mãe para sustentar. O que me resta, então e trabalhar, estudar, cuidar do meu corpão e manter os olhos bem abertos para o dia em que um cara bem endinheirado aparecer no meu caminho. Quando isso acontecer, moverei céus e terra, mas ele será meu e me dará tudo o que eu quero. Ou não me chamo Quilônia Jensen.
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Uma Ambição
RomanceUm delicioso e ousado romance, este livro apresentará uma anti-heroína obstinada que possui um talento incomum para a sedução, o artifício e o atrevimento. Quilly é muito mais do que um rostinho bonito. Para sobreviver ela aprende a reunir a bela e...