Normalmente as moças do Colorado, no Rio Grande do Sul, nunca desperdiçariam uma tarde tão linda como aquelas trancadas dentro do quarto como eu fazia. Por certo muitas delas passeariam pelas praças na companhia de belos rapazes, ou quem sabe em uma lanchonete qualquer só para jogar conversa fora. Qualquer garota sensata tentaria se distrair ao invés de agir como eu, fingindo trabalhar feito uma louca, enquanto seus muitos pensamentos vêm e vão em um único as-sunto: fantasmas do passado!
Eu estou apenas fingindo que tudo permanece perfeitamente bem. Contudo, as coisas não são assim. As dúvidas me fuzilam nesse tempo que parece não passar. João solto... atrás de mim... Arthur vivo... mentiras... ameaças... dor... perseguição. Por que diabos eu me importo com tudo isso se minha vida está tão bem resolvida? Se qualquer ato criminoso do João contra mim o faria voltar para prisão? Se suas palavras toscas foram somente para me confundir e ameaçar? Se pode ser a pior das insanidades eu duvidar sobre a morte do Arthur? No entanto, diante de tantas perguntas, eu não tenho as respostas certas para dar a mim mesma.
Eu salto da cama calçando minhas sandálias, enquanto passo as mãos pelos meus cabelos convulsivamente. Até parece um vício. Saio do quarto passando pelo corredor até a sala. Paro porque preciso respirar antes de seguir. Minha cabeça está acometida de perguntas que, talvez, Elisabeth não entenda, e eu sei que não posso fazê -las de qualquer forma se de fato quero ouvir a verdade. Volto a caminhar, dessa vez em direção à cozinha, ainda sem saber como dizer.
— Precisando de algo?
Tento me acalmar, ao passo em que meu coração bate acelerado. Eu me aproximo lentamente ainda em silêncio até a mesa e sento-me em frente à minha mãe, que parece concentrada demais naquela pilha de papéis à sua frente. Ela sempre trazia trabalho para casa depois do expediente e se afundava neles até não poder mais. Essa era a rotina dela quase todos os dias desde quando rompeu com o João. Eu até entenderia pela decepção que ele causara, mas não que esse precisasse ser um motivo para que sua vida parasse quase por completo.
— Não estou com fome.
Respondo, torcendo para que meu estômago não ronque, me denunciando por aquela mentira. Eu quero comer alguma coisa, eu preciso porque passei o dia quase inteiro naquele quarto atormentada pelas minhas lembranças, mas as questões em si, que agora causam meu desconforto bem maior do que qualquer necessidade de comer, me impedem de fazer isso.
— Por que trabalha até essa hora? — pergunto, sem obter qualquer atenção dela. — Por que não descansa um pouco, mão? Não acha que está exagerando?
— Trabalhar nunca é demasiadamente desnecessário — ela permanece concentrada naqueles malditos papéis. — Além do mais, preciso entregar esse relatório até amanhã, sem falta.
Eu nunca senti tanta vontade de gritar com minha mãe como nesse momento. Quero sacudi-la, pegar aqueles papéis inúteis e jogar para cima, para mostrar para ela que a vida nunca parou, que eu estou aqui e sempre estarei para o que ela precisar, no entanto me contenho, afinal os meus motivos de estar aqui são outros. Talvez em outro momento eu a sacuda. Resolvi ir direto ao ponto.
— Preciso ir visitar o túmulo do Arthur.
Foi como se o mundo estivesse em câmera lenta. Ela levanta a cabeça e fica ali me olhando por longos segundos, surpresa. Pelo menos assim eu conseguia chamar sua atenção.
— Visitar o túmulo? — Ela me pergunta, porque não parece acreditar. — Por quê, se você nunca se importou com isso?
— Agora me importo.
tudo o que consigo dizer. Parece tosco para mim, entretanto não para minha mãe, que imediatamente abandona seu precioso trabalho, se levantando impaciente e aparentemente trêmula virando as costas para mim enquanto se dirigia a pia.
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Meu Delírio - Livro 2 DEGUSTAÇÃO
Roman d'amour" Zoe agora é uma mulher bem resolvida, com pensamentos e objetivos diferentes. Começa a trabalhar como professora na escola Princesa Isabel, no Colorado e quando ela pensa que o seu passado está resolvido, morto e superado, o que eram apenas lembra...