O último Anseio

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O último anseio

É estranho. Nunca pensei que fosse assim. Nunca pensei que essa seria a sensação. Sinto meu corpo tremer e todo meu ser se contorcer, muito embora eu ainda esteja inerte.

Tento olhar em minha volta, e tudo que vejo é frio, um cinzento e esverdeado nada. A audição também não ajuda, escuto apenas um leve e incômodo zumbido que em minha mente distorcida insiste em revelar-se como uma voz, uma distante voz insistentemente gritando por socorro. "Salve-me, salve-me" repete a singela voz, porém não há como ajudar; não há salvação alguma nem para mim mesmo, não agora.

A sensação gélida parece congelar minha alma, e os últimos resquícios de cores que antes me restavam, agora se esvaem num redemoinho turvo e avassalador. Fecho os olhos, não quero mais ter esta visão. Engano-me, pois no instante em que tudo parece mais calmo, sou atacado por uma onda de imagens, internas e não externas.

Incrível, penso. Não esperava que isso ocorresse de verdade.

As imagens se apresentam para mim como molduras fixadas numa parede negra, e agora enxergo através de mim mesmo. Visualizo cada fato, cada momento importante pelo qual passei. Os bons, os maus, os felizes e os dolorosos.

Observo-me quando criança, e vejo as breves estações infantis de que pude desfrutar. E então rapidamente sou jogado para minha fase mais jovial.

Lá estava eu, em posse de minha espada, brandindo-a em minha primeira luta, caindo no chão logo em seguida. Minha primeira derrota, mais esta não seria a última e nem a mais difícil de encarar.

Eu me reergui, pratiquei, prosperei, tonei-me forte. Com minha lâmina em mãos fomentei o caminho para glória, e sobre um rastro de sangue proclamei-me "O invencível". Porém nenhum homem é inteiramente invencível, e até o mais grandioso dentre todos, um dia encontra a arma que pode o quebrar. No meu caso, essa arma era ela.

Sua face surge diante de mim e no profundo abismo em que me encontro eu tento alcança-la. Tento, repito e falho, por fim admito que não posso. Paro outra vez, e apego-me a mais uma lembrança.

Volto ao lago em que a encontrei pela primeira vez. Fito-a novamente em sua beleza inenarrável, admiro em involuntário silêncio seus cachos tão negros como a noite esvoaçarem junto à brisa matutina. Lembro-me de tudo, de tudo que a diz respeito. Lembro-me dos seus olhos tão incomuns, que refletiam o melhor de tudo que via, lembro-me de seu sorriso, o mais belo que um dia eu já tenha visto, lembro-me de sua voz, a única que podia acalmar minha fera interior.

Por tanto tempo ela foi meu único porto seguro, e todos os encontros à beira de tais águas eram meu único refúgio. Não demorou muito para que eu pedisse sua mão. Entretanto, a vida de um guerreiro sempre é cercada de maldições, e o campo de batalha era a minha.

Os detalhes da última guerra aparecem e agora me vejo cavalgando numa estrada de corpos. Os inimigos eram fortes, mas meus soldados mostravam-se mais ainda. Dias se passaram desde então, desde que eu a deixei em nossa província.

A cada garganta cortada por minha espada, fantasmas passavam a me perseguir, a cada lago de meu interno em que mergulhava, o único em que eu desejava estar era naquele em que eu podia encontra-la.

Avancei pelos campos e pelos mares, mergulhei nas entranhas das batalhas, joguei-me ao fundo do horror e da insuportável espera, até que o dia do retorno chegasse.

Tudo estava calmo. A vitória fora conquistada, as mortes foram muitas, mas nós resistimos. Porém a calmaria logo fora extinta, dando lugar ao que os Deuses e os monges chamam de carma. De uma hora para outra, toda a fúria do destino pareceu tombar sobre mim, todas as almas das vidas que roubei voltaram para tomar-me o que eu tinha de mais precioso.

Retorno ao estado inerte, e as molduras alternam-se como um tornado em formação. Vejo-me correndo dentre os destroços, dentre as chamas e a as armaduras quebradas. Com meu corpo em exaustão eu prosseguia, com minha armadura pesando em minhas costas eu continuava, com os cortes em minha carne eu persistia. Estava cego para qualquer outra coisa.

Os inimigos em minha frente eram muitos, e mesmo assim não me deixei intimidar. Passei por todos, do maior ao menor, destrocei a muralha em minha frente na esperança de vê-la com vida; porém, já era tarde.

Fui ao chão, desabei sobre mim mesmo; até a própria fúria me abandonou. Vendo-a naquela calçada de ladrilhos vermelhos, senti meu mundo cair. Como poderia eu, o mais habilidoso, o mais forte, aquele que conquistara as mais improváveis vitórias, me sentir deste jeito? Poderia ter gasto todo meu tempo procurando a resposta, poderia ter ficado parado no mesmo canto, pois não sabia exatamente o que fazer; entretanto, fui até ela. Agarrei-me a seu corpo sem vida; seus belos olhos já não me olhavam mais. Apertei sua mão e acariciei seu rosto pálido, pela primeira vez senti lágrimas caindo de minha face, pela primeira vez senti tamanha dor, uma dor pior que qualquer outra, uma ferida maior que qualquer chaga de guerra.

As imagens mudam uma vez mais, e agora estou de volta à última lembrança, ao último momento antes de eu acabar onde estou. Diante de sua cova, próxima ao lago em que nós nos encontrávamos, eu passei o resto dos meus dias e anos, a maioria de minhas horas, até que meu espírito se cansasse, até que minha espada enferrujasse e eu já não pudesse mais usá-la.

Sentei-me ao seu lado nesse novo dia, conversei, pronunciei algumas palavras, e mesmo que ela não me ouvisse, mesmo sabendo que ela não estava ali, era o suficiente. Eu me tornara velho, já não era mais o mesmo. Estava quebrado por dentro, muito mais do que por fora. Eu sabia que por mais que eu tentasse, a cicatriz em minha alma nunca fecharia por inteiro, pois nem mesmo mil lanças e espadas ferem mais que um amor perdido.

Minhas obrigações estavam feitas, minhas escolhas haviam sido tomadas, eu suportei tanto tempo sem tela por perto, porém agora já não era possível. Minha hora chegara, e isso era certo.

Caminhei até o lago, com meu velho manto posto acima de minha surrada armadura de couro. Mergulhei. Voltando ao presente, aqui eu estou.

O frio me aperta cada vez mais enquanto eu afundo, não há mais onde me agarrar, não há mais imagens aonde me sustentar. Está acabado. Esta deve ser a hora.

Sinto a doce amargura da água invadindo meus pulmões. Sinto o ar me abandonar e a vida se dissipar aos poucos. Não há dor, não há agonia, pois como a morte haveria de doer sobre as costas de quem já foi tão cruelmente castigado? A tênue luz desaparece, a escuridão toma conta por completo, não há mais nada a esperar. De todos os lagos em minha vida, esse será o último em que mergulharei.

Despeço-me de meu mundo e abraço o árduo caminho para os portões dourados do além-vida. Caminho por uma escadaria que não consigo enxergar, o véu negro desaparecera, e uma luz tão calmamente clara toma conta do meu ser. A luz ofusca minha visão, mais ao fundo de tal claridade eu a vejo, olhando diretamente para mim. Seguro seu pulso, tão firmemente terno, sou puxado para cima, e vejo-a mais uma vez a minha espera, tão bela quanto eu lembrava, tão doce quanto no dia em que a deixei. Vejo seu sorriso novamente, sinto seu toque, "está tudo bem agora" ela diz. Estou onde deveria estar e com quem eu queria estar.

Nada mais importa.

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