1872

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A segunda consulta com Lívia foi mais longa. Qua do Leonela a trouxe, ela já usava o vestido azul claro das pacientes mulheres e parecia bastante tranquila. Sentou-se com dignidade, arrumando o vestido como se o tivesse acabado de comprar no shopping.
Perguntei-lhe se dormira bem, confirmou-me que sim. Seu rosto encontrava-se de fato relaxado, sem rugas, sem marcas, atraindo meus olhos. Esforcei-me para baixar os olhos e passei a conferir nas fichas minhas anotações e rabiscos. Perguntei-lhe, com cuidado, se seu filho também dormira bem e como ele estava se sentindo morando no hospital.
Ela respondeu, abrindo um sorriso enlevado, que como ela sele dormira muito bem e que como ela ele estava muito contente, querendo saber de tudo sobre o avô que encontraria. Neste momento, ela completou, ele brinca com as outras crianças no pátio.
Há dois pátios no hospital. A paciente se referia ao pátio menor, aquele para o qual as janelas dos quartos se abrem: apenas dois bancos de pedra à sombra de uma única amendoeira já bastante idosa, no centro de um retângulo de terra batida e sem grama, aqui e ali tufos de mato insistente.
Como não internamos crianças, não era possível que Luís estivesse brincando com as outras crianças. No entanto, como Luís também nào existe, a ausência de crianças não chegava a ser um problema para ele ou para mim.
Perguntei-lhe, então, se tivera bons sonhos. Ela me informou que nunca sonhava. Eu lhe disse que ela sonhava, é claro, como todas as pessoas neste mundo, embora não se lembrasse dos seus sonhos. Muita gente não se lembra dos próprias sonhos mas toda a gente sonha. Ela me retrucou, com sua lógica severa, que se ela não se lembrava era como se não sonhasse, pois quem senão ela teria acesso a seus próprios sonhos?
A senhora tem razão, eu disse, em parte impressionado com seu argumento, em parte para fazê-la pensar que marcava um ponto comigo. A senhora tem razão. Deixemos seus sonhos de lado, por ora. Conte-me sobre a sua família: ontem se referiu a apenas um irmão com o qual não tem contato, mas os seus parentes mais distantes, me diga por favor quem são, o nome deles, por exemplo, seus avós, tios, primos, se eles também moram no Catumbi, no Rio de Janeiro se sabem que a senhora está aqui, se se preocupam com a Senhora.
Ela hesitou em responder, olhando com atenção as fichas que eu arrumava para começar as anotações do dia. O senhor vai escrever os nomes dos meus parentes nesses cartões?, perguntou. Sim, respondi; vou escrever os nomes dos seus parentes bem como toda informação que puder me passar sobre a senhora, para melhor ajudá-la.
Mas o senhor já está me ajudando, não precisa fazer mais nada, ela retrucou, fugindo de responder ao que lhe perguntara. O senhor já está me deixando ficar hospedada aqui para esperar o meu pai, sempre lhe agradecerei por isto.
Dona Lívia, disse eu, mal contendo a ironia, não creio que a senhora tenha nos procurado apenas para que a hospedássemos no nosso estabelecimento. Não, respondeu ela, eu os procurei para que me hospedassem no mesmo lugar onde eu marquei encontro com o meu pai.
Nào pude deixar de sorrir com a sua coerência interna. Certo, disse eu, e fiz uma pergunta mais direta, para ver se estava do prumo: seu pai ainda é vivo?
Seu rosto manifestou espanto genuíno: como eu poderia me encontrar com ele se ele estivesse morto? Certo, disse eu, e para não deixá-la respirar contra-ataquei, alterando de propósito a forma de tratamento: em que ano você nasceu, Lívia?
1872, ela respondeu com toda a calma. A senhora quis dizer "1972"?, perguntei, mesmo assim achando que ela não teria tanta idade. Não, respondeu ela, com um sorriso de incredulidade: eu quis dizer o que disse, 1872, senão eu teria perto de cento e quarenta anos de idade.
Parei de respirar e fiz a conta rapidamente em uma das fichas. A sua matemática se mostrava totalmente invertida, mas correta: se por absurdo a sua história fosse verdadeira, ela contaria de fato com bem perto de cento e quarenta anos de idade. No entanto, ela se retribuía todos esses anos se tivesse nascido em 1972, e não no século dezenove. Uma conta se misturava coma outra e a minha cabeça girava, apesar do meu treinamento em lógicas ilógicas.
De todo modo, preferi não corrigi-la. Anotei as contas na ficha, sentido um arrepio incômodo na base da nuca. Em que dia e em que mês, por favor, perguntei, como se fosse um burocrata. Se não em engano, primeiro de janeiro, doutor. Se não se engana? Em que dia você comemora aniversário?, perguntei, entre sorrisos. Nunca comemorei o seu aniversário, ela disse, abaixando os olhos. Nunca?, espantei-me. Mas, por quê? Não posso responder a essa pergunta, eles nunca me informaram isso. "Eles", quem?, peeguntei, enfatizando as aspas. "Eles", ora, respondeu ela, com a mesma ênfase: "eles" é sempre o meu pai.
Não entendi bem o que aquela frase queria dizer mas a anotei imediatamente: "eles é sempre o meu pai". Parecia importante, assim como o ano 1872.
Como disse na nossa conversa precedente, eu já encomendara uma biografia de Machado de Assis e alguns dos seus romances, provavelmente eles me dariam alguma explicação para Lívia ter escolhido aquele ano em particular como o ano do seu nascimento. Logo eu teria muita coisa para ler.
Levantei a caneta e voltei a perguntar, de bate-pronto: a senhora sabe em qur ano nós estamos? Não, ela respondeu também de bate-pronto e sem desviar os olhos, como se eu tivesse perguntado em que ano Cleópatra nasceu.
Não? Não, ela insistiu, e ainda acrescentou: desculpe, eu não tenho relógio.
Naquele momento, quando ela misturou de repente anos, horas e relógios, eu não pude conter o riso, me vendo de repente frente a uma comediante tarimbada. E, exatamente como uma comediante tarimbada, ela não riu e perguntou do que estava rindo. Pigarreei e lhe pedi por minha vez desculpas, 😂 era apenas uma piada que me havia ocorrido.
O senhor não pensa as piadas, as piadas é que lhe ocorrem assim como se tivessem vontade própria?, foi a vez de ela perguntar, como se eu fosse o louco e ela, a médica. Fiquei de boca aberta por algums segundos, que se estenderam por outros tantos porque ela não tirava seus olhos límpidos dos meus. Quando finalmente consegui falar, pigarreei novamente e preferi usar sua própria expressão para tentar escapar da armadilha: sim, as piadas têm vontade própria e são muito perigosas.
Mas me diga, então, perguntei, para retornar às questões da consulta: em que cidade nós estamos?
Itaguaí, ela respondeu. Resposta correta, como sabemos.
Eu precisava confrontar seu delírio com a realidade, batendo o ano de 1872 contra o ano de 1872 contra o ano em que estamos. Poderíamos determinar a extensão da sua doença, sua possibilidade de cura ou não, a partir desse confronto, que talvez fosse até mesmo um choque para ela.
Tentei fazê-lo inicialmente através das coisas e dos aparelhos que nos rodeavam naquela sala. Peguei primeiro o telefone da minha mesa e lhe perguntei se ela sabia que o aparelho era aquele. Ela respondeu, corretamente, que era um telefone - acrescentando que o Imperador tinha experimentado um, como ela lera nas folhas.
O telefone acabou de ser inventado. Dom Pedro II experimentou um aparelho e eu já tenho outro na minha mesa?
O senhor deve ser realmente um doutor importante, concluiu ela. Por um instante me senti envaidecido, mas no instante seguinte me senti um tolo que em breve "daria uma ligadinha" para a Princesa Isabel.
Então virei a tela do monitor da minha mesa para ela e perguntei, e isto, o que é? Lívia apertou os olhos, aproximou-se mais e disse, hesitante: não sei... é uma espécie de cinetoscópio? Ouvi falar disso, mas não sabia que tinha cores tão bonitas.
Resisti à tentação de exibir os recursos do computador, como se a minha paciente de fato estivesse desembarcando do século dezenove. Sua fantasia resistia bem ao teste da realidade, adequando-se às minhas perguntas. Eu era quem tinha de lutar contra a minha própria imaginação para não embarcar na fantasia da moça, se já avaliava que, para uma mulher do século dezenove, ela se mostrava bastante bem-informada. Mas, consertando um pouco a pressa da minha avaliação, podia concluir que obviamente Lívia tinha estudo e leitura, inclusive do escritor que dizia ser seu pai.
No entanto, a abordagem do confronto e do choque não começava muito bem, seria adequado recuar para usá-la novamente mais tarde. Talvez fosse melhor partir de dentro da fantasia mais tarde. Talvez fosse melhor partir de dentro da fantasia para tentar achar a falha que a levaria de volta à realidade.
Lembrei que ela havia marcado encontro com o pai, o escritor Machado de Assis, no nosso estabelecimento. Perguntei se o encontro havia sido marcado por telefone ou por e-mail. Não, nem uma coisa nem outra; ele me escreveu uma carta e a mandou entregar por um menino. A senhora sabe o que é um "eletronic mail", ou em português, um correio eletrônico? Não tenho ideia, ela respondeu, mas suponho que deva ser algo bdm diferente da carta qur me foi entregue em mãos pelo menino.
Ah... , retruquei, desconcertado com as respostas tranquilas que ela dava às minhas tentativas de desconcertá-la. E onde exatamente o seu pai mora?, perguntei rápido, no esforço de me recuperar. Acho que na região das Águas Férreas, na beira do rio Carioca. Anotei o nome, percebendo que ainda teria de pesquisar, além da biografia do suposto pai da minha paciente, a história do Rio antigo. A senhora acha, não tem certeza?, destaquei. Sim, porque eu nunca fui la; a esposa do meu pai não é a minha mãe, eu nunca pude visitá-lo para não constrangê-lo.
Resisti à nova tentação, a saber, a de lhe perguntar outra vez o nome da sua mãe. Minhas perguntas não podiam tomar a forma de um interrogátorio policial.
Voltei ao pai e à carta: o que ele lhe dizia na carta? Ele me pediu para encontrá-lo no mês em que estamos, na rua Nova, na Casa Verde. Como o seu estabelecimento é o único prédio da cidade cujas janelas são pintadas de verde, deduzi que esse era o lugar; como ele não disse o dia exato, vim no primeiro dia do mês para esperá-lo aqui sem dar margem ao azar. Eu quero encontrá-lo, ela enfatizou então, fechando de leve o punho esquerdo sobre as pernas cruzadas.
O punho fechado sobre as pernas cruzadas. As pernas cruzadas, os músculos da coxa brm-desenhados no algodão azul do vestido. A pele mulata, escura, bem-destacada pela cor da roupa.
Respirei fundo. Respiro fundo agora, de novo.
O gesto de fechar o punho por cima das pernas não era especialmente erótico ou provocante, mas, não sei por quê, me provocou - me pertubou bastante. Eu precisava escapar do seu punho e das suas pernas; na hora, a única coisa que me ocorreu foi escrever furiosamente em uma; duas, três fichas de cartolina. Escrevi, no caso, várias vezes, as mesma palavras soltas, desconexas: dedos, dados, doidos; dedos, doidos, dados; doidos, dados, dedos; doidos, dedos, dados; dados, dedos, doidos; dados, doidos, dedos.
Mas logo me forcei a parar de escrever dedos, dados, doidos. Respirei fundo novamente e perguntei a Lívia como ela havia viajado do Rio de Janeiro a Itaguaí, municípios próximos mas, de toda forma, separados por dezenas de quilômetros.
Viera de ônibus, de carro, de motocicleta ou de trem?, perguntei, propositalmente omitindo as opções mais antigas e menos confortáveis, mas não de todo impossíveis, como o cavalo, numa carroça ou mesmo a pé.
Não me lembro ao certo... respondeu a moça, hesitante.
Decerto não vim a pé, seria muito longe, o sol muito quente; mas isso é importante?, retrucou, tentando fugir da minha pergunta. Temo que seja importante, dona Lívia; enfatizei, aumentando o nível de formalidade da nossa conversa e me empertigando detrás de minha mesa.
Ela não pareceu se abalar ou se constranger: bem, se lhe parece importante como cheguei do Rio de Janeiro à sua cidade, em alguma hora vou me lembrar, o senhor não se preocupe. Temos tempo, me parece, até o meu pai chegar. Talvez, tentou lembrar, ou disfarçar, talvez eu tenha vindo no bonde dos burros?, ou então tenho tomado um tílburi? Realmente não me lembro, mas, se isso é importante, eu vou me lembrar, não se preocupe.
Ela se desviou da questão do transporte mas não muito bem, embora tivesse o cuidado de falar de meios anacrônicos de transporte, como o bonde dos burros e o tílburi. Supus, então, que poderia tê-la abalado pelo menos um pouco. Assim, mantive a carga e perguntei se ela alguma vez havia se encontrado com seu pai.
Na verdade, nunca, ela respondeu, baixando os olhos e tremendo os lábios de leve. Com aquele movimento, muito delicado, eu perdi de novo a minha respiração. Assaltou-me a vontade idiota, pouco profissional, de tomá-la no colo como se ela fosse uma menina de cinco anos de idade que se tivesse perdido do pai e da mãe no parque de diversões. Logo me lembrei, porém, que ela não tinha cinco anos, mas sim, a julgar por suas palavras, algo em torno de cento e quarenta anos de idade! Recompus-me rapidamente e lhe perguntei como sabia, então, que seu pai era o seu pai verdadeiro e não, digamos, um pai hipotético ou emprestado.
Ela voltou a me olhar, levemente indignada. Respondeu: minha mãe nunca me escondeu o nome do meu pai, eu li o nome do meu pai na certidão de nascimento, ele mesmo se correspondeu comigo mais de uma vez!
Você, me desculpe, a senhora, a senhora tem a certidão do seu nascimento consigo?, tentei aproveitar a deixa. Aqui, não, ela disse; na verdade preferi não trazer nenhum documento para essa estadia. Desculpe-me novamente, pedi, mas é normal as pessoas carregarem seus documentos para todo lugar, principalmente se estão longe de suas casas e até de suas famílias; por que razão a senhora "preferiu", como disse, não trazer nenhum documento para sua estadia conosco?, perguntei.
Lívia baixou mais uma vez oa olhos, cruzou as mãos sobre as pernas já cruzadas e respondeu, a voz igualmente um pouco mais baixa: senhoras não andam com seus documentos.
Desde quando... eu ia perguntar, mas me detive a tempo.
A pergunta certa seria a contrária: desde quando as mulheres passaram a andar com seus documentos na rua - provavelmente desde que as mulheres começaram a votar, no início do século vinte.
Fiquei um pouco tonto: ao tentar reconstruir a história e o delírio de Lívia, via-me jogado para lá e para cá entre três séculos distintos. De toda forma, não conseguia devolvê-la à realidade, como se ela estivesse ganhando aquele jogo de máscaras e relógios. Para me apoiar em coisas mais tangíveis, lembrei-me de que sou um médico e lhe perguntei qual era o seu tipo sanguíneo.

ELA RESPONDEU QUE SEU SANGUE ERA "NORMAL". Só podia responder isso, é claro, pois somente em 1900 descobriu-se a diferença entre os tipos de sangue e, consequentemente, descobriu-se tambŕm por que algumas pessoas morriam em decorrência de uma transfusão e outras, não.
Agarrei-me no talonário de solicitação de exames (como um náufrago se agarra a seu colete salva-vidas) e, escrevendo com pressa, solicitei exames completos de sangue e de urina, bem como os eletros de praxe: um eletrocardiograma e um eletroencefalograma.
Não, eletrochoque não é exame, é tratamento, a que hoje recorremos em situações bem mais restritas. Sim, ainda se usa, mas pouco, de maneira bem controlada, e o caso de Lívia está longe de pedir esse tipo de intervenção. Você sabe de tudo isso, por que pergunta? Não sabe? Então deveria saber.
Sim, quase pedi uma tomografia do cérebro de Lívia, mas, primeiro, não temos tomógrafo no hospital e, segundo, certamente uma tomografia não me daria resultados mais palpáveis do que os que tenho até agora. A paciente parece fisicamente bastante saudável, de fato muito saudável, e ainda não mostrou qualquer sintomatização além dessas, de se apresentar como filha de Machado de Assis e de acariciar a cabeça de um filho inexistente.
Eu ainda não me sentia seguro para lhe prescrever os neurolépticos, como haloperidol ou mesmo olanzapina. Ela, por seu turno, mostrava-se absolutamente convicta quanto às suas fantasias, o que aumentava a minha própria insegurança. A medicação poderia detonar a agressividade e a autoagressividade que ainda não tinham se manifestado, ou pior, poderia empurrá-la para um quadro depressivo à beira da catatonia.
Encerrei a consulta um pouco abruptamente, chamando a enfermeira que faz plantão nos meus turnos para levar a paciente de volta a seu quarto e providenciar os exames. Leonela chegou rapidamente, sorrindo de leve, o que não era nada comum para ela. Assim como a atendente na portaria, Leonela também parecia se divertir com o caso, caso este que ainda não lhe dava nenhum trabalho maior, mas fornecia histórias para comentar no refeitório e contar em casa, à noite.
Lívia se levantou, calma e dócil, para acompanhar a funcionária, não sem antes desejar boa tarde, doutor.
Bo-boa tarde, Lívia, respondi, e me irritei comigo mesmo.
Esperei elas saírem para dar um soco na minha mesa, fazendo saltar minhas anotações e quase jogar no chão o monitor.

Oi amores?
Por que demorou tanto pra postar ess3 capítulo?
Enfim, desculpa mesmo, de verdade, o problema é a Internet, a culpa é dela, por isso acabei demorando!

Bom, estão gostando? Se sim, está vendo essa estrelinha aqui ho 👉 ☆ poisé vai lá em baixo e clica em cima dela pra ficar laranjada ok?!

Beijão e até a próxima,tchal!

A Filha Do EscritorOnde histórias criam vida. Descubra agora