Capítulo 04

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Ouvira as palavras saírem da boca de Awa tão lentamente que parecia câmera-lenta. Atordoado por alguma droga capaz de alentar tudo à sua volta. Mas passou o resto da noite em claro. Cada sílaba dita em uma repetição eterna na mente. Remoendo tudo em um triturador invisível que passava e repassava, mas nunca deixava a verdade mais macia. Awa estava puxando o gatilho, e o tiro era a queima roupa bem no meio da testa dele.

Mais do que qualquer coisa, queria alcançá-la ou apagá-la de vez. Não sabia o que acontecia dentro de si, não sabia onde tudo aquilo o levaria, mas sabia o que estava rodando na mente agora, o que estava gritando a plenos pulmões.

Uma voz que só ele escutava, dentro de si, fazendo cada fibra, cada músculo, cada fração de sua alma vibrarem como cordas de um violão.

Vira as lágrimas rolarem pelo rosto alvo. Tão suavemente, caindo e pingando da ponta do queixo. Vira a dor e o vazio, e como uma doença contagiosa, aquilo o apossou tão rapidamente que foi quase imperceptível. Se não fosse pela sensação esmagadora que sentia agora, não fosse pela nítida impressão de que era tarde demais.

Tarde demais para se arrepender. Tarde demais para querer mudar o imutável.

Alexsander olhou para o relógio na parede do enorme cômodo mais uma vez. Ele já esperava ha vinte minutos e se levantou tendo a certeza que Awa sequer havia saído do quarto.

A caminhada pelos corredores lembrou uma marcha, conforme atravessava o castelo até os aposentos da garota.

― Você não vai tomar café? ― Brandiu. Os olhos fixos na porta e os ouvidos presos na respiração que oscilava terrivelmente do outro lado. ― Vamos, Awa...

Mas o silêncio que durou longos minutos o fez sair dali, perturbado, ordenando a Martha que deixasse algo ao pé da porta para a menina comer.

Enfiou-se na oficina até o almoço onde foi completamente ignorado e exatamente como nas duas refeições, a janta sequer foi tocada por nenhum dos dois.

Na madrugada, já sem rumo para os próprios pensamentos, Alexsander abriu a garrafa de conhaque. Não bebia álcool há pelo menos meio século. Não apreciava o sabor, nem os efeitos. Mas sentimentos desesperados exigiam medidas desesperadas.

Ele colocou o líquido dourado no copo e sentou-se diante da lareira, na biblioteca.

Os olhos azuis reluziam as chamas do fogo quando bebeu o primeiro gole da bebida amarga. Em todos os seus séculos de vida... Nunca se sentiu tão perdido. Vazio. Há meia hora seguinte resultou numa garrafa tão vazia quanto o homem; foi jogada ao solo sem nenhuma delicadeza. O vidro se espatifou como o controle dentro de Alexsander e os sapatos pisaram sobre os cacos quando saiu da biblioteca, cambaleante. Os cabelos que já chegavam aos ombros caindo em frente a visão já quadriplicada.

Ele não queria sentir tudo aquilo. Não queria mentir pra si mesmo e dizer que a queimação era do conhaque.

Awa sempre foi a única coisa colorida num mundo preto e branco em que ele viveu em repetição por tantos séculos.

Awa era a primeira capaz de fazê-lo sentir tudo que sentia agora.

A culpa.

O remorso.

A tristeza.

O palpitar tão forte que trazia a vontade de nunca mais soltá-la.

E o vazio.

Um vazio tão grande que o engoliu como a escuridão da noite ao atingir a área externa do castelo.

Alexsander rumou, cruzando as pernas e tropeçando como um velho bêbado, para o estábulo, colado ao celeiro.

Sentimento Solúvel - (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora