A Cruz do Zé Ninguém

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 Por primeira vez, Renato olhou ao fundo da lata que tinha em suas mãos. Antes, passava o olho por cima, justo pra não criar intimidade. Evitava reconhecer no objeto, seu pai e o trágico destino que a vida lhe havia reservado. Enterrado como indigente, sem choro nem vela, morreu de fatiga aos trinta e três anos, idade de Cristo. Sua cruz foi ter nascido um pobre José, um 'Zé ninguém' preto e favelado. Fatiga foi tudo o que seu trabalho lhe ofereceu, além do pão seco com água, arroz com feijão na mesa, e o teto goteirado de um barraco. Para seu pai, o subemprego era mais digno do que pedir esmola nas ruas. Ironicamente, após a morte de José, Renato forçou-se a contrariar os valores que o pai lhe havia ensinado. Quando a fome aperta, poucos moralismos falam mais alto. Seu estômago trovejava e, ainda, havia sua mãe, agora viúva, mal de saúde, semianalfabeta, dona de memória e perspectiva curtas, apenas preocupada em manter vivos os cinco filhos menores. Pedir esmola, doações, ou qualquer que fosse o termo, foi um ato corajoso, embora constrangedor para Renato. Mas a 'vida', sua e de sua família, era a ordem do dia.

Pedindo dinheiro, fazia-se necessário um recipiente para guardar moedas. Foi aí que Renato avistou uma lata jogada na rua, sem a convicta negação de antes. Chegando à parada de ônibus, improvisou um texto:

"Não gosto de pedir. Mas meu pai morreu de fatiga, e tenho mais quatro irmãos menores, que alimentar. Peço que, por favor, ajudem-me com moeda, dinheiro ou lanche... Se existe um Deu justo, Ele retribuirá".

O que ouviu, em seguida, foram frases feitas como:

"Pobre gosta mesmo de ter filhos!"

"Quem dá aos pobres, empresta ''Adeus'" (irônico esse)

"Por que não vai trabalhar, vagabundo?"

Foi aí, então, que reconheceu um empecilho maior a quem seja pobre, maltratado, pouco estudado, mal vestido e desempregado: o preconceito. Preconceito é aquela ideia que se forma sobre alguém ou algo, a partir de conceitos pré-estabelecidos. Gente preconceituosa acusa sem dar espaço à defesa. Quem o criticou, não lhe deu tempo, ouvidos ou oportunidade. Apenas julgou o litro pela lata.

Nas ruas, poucas pessoas olhavam Renato, de frente. Era como se poucos dentre os que caminhavam  partilhassem de mesma imagem e semelhança. Nem os que se diziam cristãos, os religiosos que acabavam de sair da igreja, o tratavam como se trata a um 'irmão', filho do mesmo Deus pai.

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